Às vezes, acho que a palavra
“satanás” causa o mesmo efeito que a palavra “sexo”: se você ouve ou lê,
imediatamente dirige sua atenção, quase inconscientemente. Há grande interesse
dos cristãos em Satanás – livros totalmente não bíblicos que falam sobre
Satanás, como Filho do Fogo, Ele Veio Para Libertar os Cativos e Este Mundo
Tenebroso vendem muito, fazem sucesso e são facilmente aceitos como canônicos,
modificando toda a teologia. Existem muitos mitos sobre Satanás e, por esta
série, quero redescobri-lo através das Escrituras. Uma maneira errada de
compreender Satanás pode influenciar a maneira como entendemos Deus.
Em primeiro
lugar, é importante ressaltar que a Bíblia revela bem menos sobre Satanás do
que a complexidade dos credos que temos sobre ele. Por vezes, refletimos
profundamente sobre toda a personalidade e biografia do diabo tanto quanto
meditamos em Deus, o que é totalmente desproporcional à quantidade de
informações que a Bíblia mostra. Há lacunas na Bíblia sobre diversos conceitos
que, sem motivo, cremos a respeito de Satanás.
A crença em
sua origem é um exemplo. Como estamos acostumados a pensar? A história clássica
é a seguinte: Deus criou todos os anjos bons. Um deles, o mais poderoso, um
querubim chamado Lúcifer, decidiu se orgulhar e tentou tomar o trono de Deus.
Isso ocorreu antes de Deus criar o universo, antes do Gênesis. Deus então
expulsou Lúcifer e um terço dos anjos, que haviam se unido em sua rebelião.
Esses anjos se tornaram os demônios e Lúcifer abandonou esse nome e virou
Satanás. Algumas pessoas ainda acrescentam o mito de que Lúcifer era um músico
do céu. Bem, what if I told you... essa história não está na Bíblia? Na
realidade, essa história tão viva no imaginário coletivo dos crentes é feita a
partir de tradições sem fundamento e de textos recortados e colados fora de
contexto.
Onde está o
nome Lúcifer? Ele está na Bíblia? Como foi descoberto esse nome primitivo do
diabo? Na verdade, Lúcifer é o termo latino que Jerônimo usou quando traduziu a
Bíblia para esse idioma no texto de Isaías 14:12 – “estrela da alva”. Na época
dele, já estava consolidada a interpretação de que esse texto referia-se ao
diabo. Portanto, o acréscimo do nome Lúcifer à tradição já errada foi
facilmente aceito. Veja que, antes da versão de Jerônimo, nunca houve o nome
Lúcifer na Bíblia – é um termo não bíblico cujo significado foi modificado da
simples expressão “estrela da alva” para um nome próprio do diabo pela
imaginação humana.
Mas o que
Isaías 14 tem a ver com o diabo? Tanto quanto Ezequiel 28: nada. Ambas são
profecias contra reis humanos nas circunstâncias da época. Em Isaías 14, o
profeta fala contra o rei da Assíria (chamado rei da Babilônia nesse texto); em
Ezequiel 28, o oráculo é sobre o rei de Tiro. Basta ler o texto inteiro para
verificar. Mesmo dentro dos capítulos, muitos versículos não condizem com a
atribuição a Satanás. De acordo com Isaías 14, o rei da Assíria foi derrubado
por Deus, atirado ao Sheol (v. 15) – portanto, morto – e contemplado com
escárnio pelos reis da terra e chamado de “homem” (vs. 16,17) – que rei da
terra viu a queda de Satanás? É simplesmente incoerente. Em Ezequiel 28,
“Satanás” seria um querubim perfeito que se orgulhou e foi expulso por Deus (vs
12-15). Mas, como foi que o comércio de Satanás contribuiu pra esse orgulho? E
como que, outra vez, as nações assistiram à sua queda (vs. 16, 18,19)? As
circunstâncias apontam claramente para o que está explícito: a destruição de
Tiro. Se Isaías 14 fala que o rei procurou subir às estrelas para firmar o seu
trono acima de Deus, ou se Ezequiel 28 diz que o rei era um querubim adornado
de pedras preciosas, que pisava no monte santo e andava no Éden, tudo isso é
poesia, metáfora, perfeitamente comum na linguagem dos profetas. Os dois
profetas falam contra diversas nações e reis em seções específicas dos livros,
e o rei da Assíria e o rei de Tiro estão entre eles. Nada há sobre Satanás
nesses textos. Esses textos passaram a ser atribuídos a Satanás no fim do 2º
século da era cristã. E a história era diferente do que se conhece hoje:
Satanás teria se orgulhado e caído do céu no momento em que teve inveja do homem
e induziu Eva a pecar por meio da serpente. Ele caiu junto ao homem, no Éden.
Embora seja fantasiosa, ainda é menos incoerente do que a opinião de Orígenes
no 3º século de que a queda de Satanás ocorreu antes da criação, versão aceita
entre as igrejas até hoje.
Outro texto
comumente usado é Lucas 10:18 – “Eu vi Satanás caindo do céu como relâmpago”.
Versículo totalmente descontextualizado. Jesus disse isso devido à comissão dos
discípulos, que retornaram relatando como expulsaram demônios. Jesus explicou-lhes
que o reino de Satanás estava sendo destruído por meio do início da obra
missionária. O Reino de Deus estava se instalando e o poder de Satanás, caindo.
O texto por completo evidencia isso. Esse versículo único não pode ser
recortado e acrescentado ao mito criado a partir de Isaías 14 e Ezequiel 28.
Quanto à história do “um terço dos anjos”, o versículo é de Apocalipse 12:4.
Diz que o dragão viu a mulher e arrastou com a cauda um terço das estrelas do
céu quando foi persegui-la. Como as estrelas viraram anjos, não tenho ideia
(embora a ideia tenha sido também de Orígenes). Como uma profecia para o fim
dos tempos tornou-se um relato histórico do início dos tempos, também não sei.
O texto inteiro fala sobre a perseguição de Satanás contra a Igreja e sua
derrota no fim, não sobre sua rebelião no início.
A Bíblia ao
menos fala, em algum momento, sobre queda dos anjos? Sim, fala. Há três textos:
em Gênesis 6:1-4, em 2Pedro 2:4 e em Judas 6. Gênesis 6 diz que os filhos de
Deus foram atraídos pelas filhas dos homens, casaram-se com elas e geraram
homens perversos. Embora a interpretação de que os filhos de Deus são anjos e
as filhas dos homens são mulheres humanas quaisquer seja a mais natural, não é
a única possível. Outra interpretação fala que os filhos de Deus são os
descendentes de Sete e as filhas dos homens são de Caim. Tradicionalmente,
essas linhagens são referidas como a linhagem dos justos e a dos ímpios, e o
texto diria que, em dado momento, elas se misturaram. Uma outra, com a qual
Luiz Sayão concorda (portanto, é a certa, lalala) é que os filhos de Deus eram
homens de poder, reis, governadores (já que o termo elohim é bem genérico para
referência ao poder), e as filhas dos homens eram mulheres acrescentadas ao
harém desses governantes. O texto estaria, dessa forma, descrevendo a grande
perversidade a que a humanidade chegou e prepara o leitor para o texto do
dilúvio, o grande julgamento de Deus. (Detalhe: Luiz Sayão também concorda que
Isaías 14 e Ezequiel 28 não falam sobre Satanás – podem, no máximo,
figurativamente, comparar a maldade do diabo com a maldade desses reis)
Entretanto,
grande parte da literatura apócrifa concorda com a primeira interpretação –
anjos casando com humanas – como o livro dos Jubileus. Judas, em sua carta,
refere-se amplamente à literatura apócrifa para ilustrar seus argumentos. Ele
usa A Assunção de Moisés, apócrifo que conta a história da disputa entre Miguel
e Satanás pelo corpo de Moisés na qual Miguel repreendeu o diabo usando o nome
de Deus, para ilustrar o seu ensino de respeito aos anjos. Ele usa o livro
apócrifo de Enoque para falar sobre a iminência do reino de Deus. Da mesma
forma, ele pode ter usado apócrifos que falam sobre a queda dos anjos para o
seu escrito “mesmo os anjos que abandonaram sua posição de poder não foram
poupados, mas sim trancados em masmorras para o julgamento”. Judas diz isso
também para adornar o seu ensino de que Deus destruirá os homens rebeldes e
blasfemos. Não significa que realmente houve queda dos anjos, mas que a citação
desse ensino apócrifo era relevante para o propósito de Judas. A situação em
2Pedro é semelhante. Essa carta é muito semelhante à carta de Judas, os temas
coincidem muito, e Pedro pode ter feito o mesmo que Judas. O propósito dos dois
com essa ilustração é o mesmo. E, mesmo se houve alguma queda dos anjos, não há
descrições de como isso ocorreu, nenhuma evidência da história popular da queda
do diabo e, ainda, não condiz com a situação dos demônios. Eles são livres e
atuam no mundo, enquanto os anjos caídos em 2Pedro e Judas estão presos no
“Tártaro”. Essa prisão, incoerente com a atuação de demônios e de Satanás no
mundo, é mais um indício de que a queda dos anjos não aconteceu mesmo.
Então, qual
é a origem de Satanás? A Bíblia não diz. Satanás sempre foi mau e pecador nos
relatos bíblicos. Minha opinião é que Deus já criou Satanás como ele é, para
que ele desempenhe suas funções. Estamos acostumados a pensar que Satanás é um
grande oposto a Deus, como se representassem polos completamente distintos.
Esquecemos de que Deus é o único e verdadeiro poder no universo. Satanás é um
anjo que está sob a autoridade de Deus, é um instrumento para que Deus cumpra o
seus propósitos. Creio que a razão de esse ensino ser tão estranho é que, mais
uma vez, pensamos em grandes opostos: Deus é totalmente bom e só faz o bem, e
Satanás é o causador de todo o mal. A crença na queda de Satanás resolve, para
muita gente, o problema do mal. Mas esquecemos de que Deus é o criador de todas
as coisas, inclusive do mal. Isso não torna Deus mau ou apenas meio bom. Deus é
perfeitamente bom porque bondade é atributo essencial de Deus, assim como
justiça, misericórdia, amor, fidelidade. Portanto, a bondade é eterna. Deus não
criou o bem, pois ele é eternamente bom. O mal é criação de Deus, é preso ao
tempo e é distinto de Deus, tal como todo o resto da criação. É isso que torna
o mal inferior e incapaz de macular o caráter de Deus. Se pensamos que Satanás
criou o mal, atribuímos um poder divino a ele. (Compreendam-me, estou tentando
fazer o máximo para não discutir predestinação e liberdade aqui)
“Eu sou o
Senhor, o seu Deus, faço a luz e crio as trevas, promovo o bem e o mal; eu, o
Senhor, faço todas essas coisas”. (Isaías 45:7)
André
Duarte
E tu achou q eu ia gostar de um post desses?
ResponderExcluirMuito se enganou, meu caro.
CURTI LÉGUAS!!! Vai entrar na minha biblotéquia. :)
Tá de parabz demattos, muito bem colocado. E não nos calemos diante das tradições eclesiásticas.
ps: reconheço e admiro teu esforço d não entrar no mérito da predestinação. É o que eu sempre digo: não dá pra se despir desse assunto ao se falar de qualquer outro.
\0/ vlw a indicação, abraaaço!
Valeuzes, Paulo!
ResponderExcluirInfelizmente o Cristianismo foi recheado de heresias, paganismo, mitologias e sincretismos. Jesus falou que o diabo jamais se firmou na verdade é o pai da mentira.
ResponderExcluirNunca foi bonzinho, nunca foi querubim e os relatos de Ezequiel 28 e Isaías 14 se referem a personagens diferentes. Um era rei de Tiro e o outro rei da Babilônia com foi muito bem explicado no texto acima.Está na hora de demitificar a bíblia. A mitologia nunca poderá ser tida como parâmetro de fé para os filhos do altíssimo. Para quem ainda está em dúvida, veja, que bastou um anjo de Deus para prender Satanás. Ver Ap. 20. Dizer que se fez mau, é reconhecer que ele não foi criado e que é um deus. Deus o criou mau pois não há outro Deus além do Altíssimo.
Que o Senhor criador de todas as cousas continue te iluminando, irmão André.
Calvino Brasil