sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Como NÃO argumentar em uma discussão teológica


       Poucas atividades cristãs possuem um potencial tão delicado para edificar ou destruir quanto a discussão teológica. Nossa geração enfrenta o grave problema do analfabetismo bíblico, razão por que discussões teológicas são frequentemente tão infrutíferas. Em muitos casos, a própria existência delas costuma ser rechaçada em nome de antíteses hereges entre conhecimento e prática, doutrina e amor, intelectualidade e sensibilidade, razão e experiência. Qualquer um que realmente gastar tempo estudando a Bíblia, especialmente os escritos de João, perceberá que não existem tais oposições. Pelo contrário, o apóstolo vincula amor, verdade, doutrina, obediência e conhecimento o tempo todo.

            Bem, isso pode ficar para outra hora. Neste post, quero apenas dar dicas práticas para cristãos que se engajam em discussões teológicas, gostando eles ou não. E quero desbancar os principais argumentos contra a existência de discussões e críticas. Nada de exaustivo, apenas o superficial do cotidiano.

            Primeiro, algumas atitudes de bom senso:
    -Escute o interlocutor. Preste atenção nos argumentos dele. Não diga suas opiniões sem primeiro responder ao que foi colocado. Em debates escritos, isso é facílimo. Leia o post, entenda o argumento do interlocutor e responda aos pontos dele antes de colocar os seus. Não pule parágrafos, não ignore informações. Do contrário, o debate perderá sua linha e vocês não vão chegar a lugar nenhum juntos.
     -Interprete o interlocutor com cuidados mínimos. Por exemplo, a gramática. Entenda a construção frasal do argumento do interlocutor. Faça da mesma forma como você resolve questões de interpretação de texto do Cespe. Com isso, você perceberá o que o interlocutor NÃO está dizendo e se livrará de fazer suposições irracionais. Para ter certeza de que você entendeu claramente o argumento, devolva-o com dúvidas, como “Então, você quis dizer isso e isso quando disse aquilo?”. Refaça os argumentos do interlocutor com suas próprias palavras e pergunte a ele se você o fez corretamente. Respostas dadas pela má interpretação e pela suposição de elementos que não existem no último dito acabam com a sobriedade do debate.
      -Limite-se ao que é dito. Não infira nada sobre seu interlocutor. Você não o conhece, não sabe o quanto ele sabe, não sabe de toda a construção teológica dele, não sabe suas intenções. Se você é pentecostal, não infira que o seu interlocutor presbiteriano é um intelectual frio. Se você é presbiteriano, não infira que o seu interlocutor pentecostal é ignorante. Se você é adulto, não infira que o seu interlocutor adolescente é um rebelde sem causa. Se você é adolescente, não infira que o seu interlocutor adulto tem Alzheimer. Desviar a atenção do argumento para a pessoa é uma falácia chamada ad hominem. A plausibilidade de um argumento é totalmente independente da personalidade de quem o expressa.
      -Não fale do que você não sabe. Reconheça que existem assuntos sobre os quais o seu interlocutor sabe mais do que você. Então, não tente chutar informações fantasiosas só para não ter de admitir que você não entende do assunto. Somente fale sobre aquilo que você realmente estudou e aprendeu, e de fontes confiáveis. Não há nada que dê mais gastura em um debate teológico do que um discordante que se enquadra naquilo que Paulo repreende: “Alguns se desviaram dessas coisas, voltando-se para discussões inúteis, querendo ser mestres da lei, quando não compreendem nem o que dizem nem as coisas acerca das quais fazem afirmações tão categóricas” (1Timóteo 1:6,7).
     -Argumente somente com base bíblica. Se é que os discordantes pretendem chegar a um denominador comum debaixo da aprovação bíblica, é necessário que os argumentos incluam declarações bíblicas ou a expressa menção da omissão bíblica sobre o assunto. Já vi muitos debates em que a Bíblia praticamente não é citada. O problema é que toda opinião tem base em alguma coisa: se não é na Bíblia, pode ser em alguma ideologia humanista, em algum sentimento subjetivo, na distorção do próprio coração... Quando a Bíblia é citada, é possível debater sobre o texto bíblico e então corrigir as interpretações erradas do texto em voga. Do contrário, cada um dará sua opinião como bem entender e nada será resolvido.
    -Delimite a base comum. Se um debate não partir de pressupostos com os quais você e o seu interlocutor concordem, ele nem começará. Por exemplo: a Bíblia é verdadeira e infalível. A Bíblia é suficiente. A definição de “suficiente” é conforme o postulado da Reforma Protestante. A Bíblia é boa, mas a tradição é igualmente válida. Pressupostos desse tipo precisam estar claros desde o princípio.
     -Saiba quando parar. Esteja consciente de suas limitações em maturidade emocional. Você não é capaz de conversar sobre qualquer coisa por qualquer medida de tempo. Perceba se você estiver se irritando e dê um tempo. Perceba também quando o debate chegou ao limite em que não haverá mais possibilidade de concordância. Não é necessário prolongar o debate indefinidamente só para não ficar com cara de “perdedor”. É possível detectar quando o debate “trava”. A melhor coisa a fazer é começar a parar.
    -Cortesia sempre. Respeito, humildade e bom humor. Se você atacar o seu interlocutor com qualquer ofensa gratuita, já perdeu a razão.
    -Tudo para a glória de Deus. A intenção não é ganhar ou perder. Não é humilhar com conhecimento nem desencorajar a crítica. Se um debate não agrega novos conhecimentos sobre Deus e não estreita os laços da fraternidade cristã, não vale a pena. Submeta suas convicções aos conhecimentos alheios, não tenha vergonha. Chegar à união em torno da verdade é muito mais importante do que defender-se pessoalmente da admissão do erro.

            Agora, quero expor os argumentos mais comuns para reprimir o debate e a crítica indistintamente:

           -“Você deveria estar pregando o amor de Jesus em vez de discutir essas coisas menores”. Esse raciocínio comete erros bíblicos e práticos. Em primeiro lugar, ele faz uma oposição entre discutir e pregar. Discutir e pregar andam juntos conforme a Bíblia. Cada epístola do Novo Testamento prega o evangelho e discute termos “periféricos”. Cada sermão de Jesus é uma pregação sobre si mesmo e uma crítica aos paradigmas farisaicos. É só prestar atenção. Em segundo lugar, esse raciocínio faz juízos de valor sem justificativa. Que base ele usou para definir o objeto de discussão como algo secundário e dispensável? Que base ele usou para definir o amor de Jesus como algo separado das proposições periféricas? Em terceiro lugar, ele é autoincriminatório. Se a pregação do amor de Jesus – seja lá o que a pessoa pensa que isso é – é tão importante que não pode ceder 15 minutos para discussões periféricas, o autor da proposição peca em utilizar seus minutos para rebater a discussão em vez de usá-los para pregar o amor de Jesus.
           
-“Você não deveria julgar”. Por algum motivo, a massa da cristandade absorveu a mania de que julgar é errado sempre e em qualquer aspecto. Primeiro: se o autor da proposição passasse mais tempo lendo a Bíblia do que exercitando sua indiferença, perceberia que a Bíblia diz SIM que nós devemos julgar: 1Coríntios 6:1-6; João 7:24; 1João 4:1-3; 2João  9-11 e inúmeros outros exemplos implícitos. Os textos que ordenam o não julgamento devem ser analisados em seuscontextos e propósitos, assim como os que ordenam o julgar. O temor indistinto de estar julgando é completamente estranho ao ensino bíblico. Segundo, essa proposição é também autoincrminatória devido ao seu potencial de relativização. Se eu digo que o pastor tal está errado em falar X, estou julgando; se a pessoa diz que eu estou errado em falar o meu julgamento sobre o pastor, não está ela também me julgando? Acaso ela também não julga que um estuprador cometeu um pecado, que um ateu precisa se converter ou que Satanás é “do mal”? É impossível não julgar em alguma medida. Para compreender, portanto, o que a Bíblia permite e proíbe quanto ao julgamento, é necessário analisar os textos, e não lançar proposições soltas no ar.
           
-“Você ignora o quanto Deus tem abençoado as pessoas através desse que você está criticando”. Essa proposição confunde a soberana graça de Deus e a responsabilidade humana. Essa confusão, se levada às suas últimas consequências, justificará os maiores absurdos. Por exemplo, Natã falhou em repreender Davi pelo seu adultério + homicídio, porque não percebeu a bênção que Deus trouxe desse relacionamento – o rei Salomão. Judá não pode ser recriminado por ter comido incesto e prostituição com sua nora Tamar, porque dessa relação saiu Perez, que foi um ancestral de Jesus. Os judeus e romanos que crucificaram Jesus fizeram algo lindo, porque desse homicídio Deus fez a maior bênção de todos os tempos. Pessoas que gostam de confundir a moralidade do ato com o benefício de seus efeitos simplesmente adotam a total amoralidade. Porque, caso não tenham percebido, Deus é o governante do universo e seus decretos são eficazes para produzir quantas bênçãos ele desejar, inclusive a partir dos pecados humanos. Até Hitler tornar-se-ia desculpável, visto que tudo o que ele fez, em longo prazo, redundou em uma compaixão mundial pelo povo judeu. Deus abençoa o mundo apesar do pecado humano, não em parceria com ele! Não importa quantas bênçãos resultem de um pecado, ele deve ser repreendido. O mundo já tem uma proposição parecida: os fins justificam os meios.
           
-“Deus vê o coração”. A ideia é que qualquer coisa feita de coração está imune ao juízo. O humanista que propaga essa ideia ignora que o coração é a coisa mais maligna que Deus pode ver no ser humano. Ele vê o coração e só encontra idolatria e imoralidade, nunca intenções bondosas. Segundo Jeremias, o coração é o que há de mais enganoso no mundo. Segundo 1João, o coração é usado por nós mesmos para nos condenar, apesar de Deus nos ter justificado. Provérbios diz que devemos guardar o nosso coração acima de qualquer coisa. Se o coração fosse algo tão puro e bem intencionado, não haveria necessidade de tantas advertências. Saul desobedeceu a Deus, mas “de bom coração”, e recebeu como recompensa o fim do reinado, um espírito atormentador e uma morte sangrenta. Os filhos de Arão prestaram culto de coração, mas em desobediência à Lei, e foram mortos pelo fogo. Amor e obediência sempre andam juntos. Ninguém pode fazer nada por amor a Deus se não estiver debaixo de sua santa lei.
           
-“Você perde tempo só querendo conhecer, sendo que o que importa é viver”. Viver o quê? Acaso você vive alguma coisa que você não supõe conhecer? É sem razão que a Bíblia ordena a meditação na lei de Deus, o “gloriar-se em conhecer-me e compreender-me” (Jeremias 9:24), o falar sobre a Bíblia ao deitar, ao levantar e ao andar (Deuteronômio 6:7)? Foi por imaturidade que a Igreja em Jerusalém “perseverava na doutrina dos apóstolos” (Atos 2:42)? Jesus não se deixou enganar pela interpretação errada de um texto bíblico usado pelo diabo, porque ele conhecia não apenas alguns textos, mas sim todos eles, e a maneira certa de interpretá-los. Jesus repreendeu os samaritanos por "adorarem o que não conhecem" (João 4). E disse aos saduceus "Errais, não conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus". É pela muita vontade de praticar e nenhuma vontade de compreender que o povo da cristandade sai justificando qualquer tradição e moda, enganados por doutrinas vãs e falsas (Colossenses 2:8). 
           
-"Desse jeito, você acaba racionalizando a Bíblia e fechando o coração para a voz de Deus". Quem diz isso precisa, em primeiro lugar, definir o que é “racionalizar”, provar que as análises gramaticais, contextuais e históricas dos textos bíblicos são “racionalizações” e – o mais difícil – provar que o ouvir a voz de Deus só é possível ao excluir a tal “racionalização”. Nada disso tem apoio nas Escrituras. Examinar, meditar e estudar são encorajamentos das Escrituras para justamente proporcionar uma melhor compreensão sobre a vontade de Deus. Os apóstatas de Israel não se importavam com os profetas de Deus porque a lei havia sido jogada fora. “Meu povo perece por falta de conhecimento”. Além disso, a razão é uma faculdade humana que serve aos propósitos de Deus quando redimida. Quem acha que a razão é sempre algo ruim, associando-a sempre a ceticismo e humanismo, deve provar que o empirismo e o misticismo não sofrem da mesma deficiência, para oferecê-los como o caminho certo para “ouvir a voz de Deus”.
           
That’s all, folks.


            André Duarte

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