Geralmente, as pessoas têm um conceito desequilibrado sobre a questão do julgar. Ou elas são demasiadamente ousadas, julgando qualquer pessoa que não corresponda aos seus preconceitos e conceituando-a como inferior, ou sendo complacente como tudo e todos, sendo por demais tímida. Vamos ver aqui o que as Escrituras dizem sobre como e quando julgar.
Em primeiro lugar, o julgamento não pode ser relativizado, assim como qualquer outro dogma das Escrituras. Conheço muita gente que convenientemente não julga nada sobre os pastores da própria Igreja, mas julga destemidamente os de outras. Ou, não julga nada que é feito em sua Igreja na liturgia, mas julga o comportamento pessoal dos membros dela. Ou, como é muito comum também, julga o que quiser, mas ressente-se de ser julgado por outros. As Escrituras respondem “sim, você tem a obrigação de julgar” e “não, você não pode julgar” para condições e contextos amplos que precisam ser avaliados.
Textos que falam para não julgar são o de Jesus no sermão “do monte” e o de Tiago. Jesus diz “não julguem, para que não sejam julgados”. Para os mais tímidos, essa costuma ser a regra suprema para qualquer situação. Mas, veja que o Senhor continua explicando o porquê desse não julgar: “com a mesma medida com que julgarem, serão também julgados” e denuncia a hipocrisia do julgamento. Seu ensino completo nessa passagem é que ninguém pode julgar se está também em erro. Jesus não proíbe qualquer julgamento, e sim o julgamento hipócrita. Essa verdade é frequentemente esquecida, pois é lamentavelmente comum que crentes julguem os erros dos outros, mas saibam dar uma “boa reposta” para os próprios. Paulo escreve aos romanos sobre esse mesmo problema quando denuncia o pecado dos judeus ao transgredirem a Lei e exortarem os outros a não fazê-lo. Ou, voltando a Jesus: “Façam o que os fariseus falam, mas não o que fazem, pois não praticam o que pregam”.
Quando a Tiago, ele denuncia o julgar pelos parâmetros próprios. Pois ele diz “Quem é você para julgar o seu irmão, visto que há um só Legislador e Juiz?”. Aqui, Tiago conclama os irmãos para serem humildes e reconhecerem que somente Deus manifestará a verdade dos corações quando julgar o mundo. Não podemos elaborar nossos próprios critérios de julgamento, nossas próprias leis morais, e depois julgar os outros por não cumpri-las. Além disso, mesmo se julgarmos segundo as Escrituras, precisamos ter extrema cautela para não nos tomarmos de espírito de orgulho e superioridade de justiça própria.
Agora, as afirmações de que devemos julgar. Veja, não é apenas “podemos” e sim “devemos”. É uma ordem. Se a Igreja não julgar quando deve, incorrerá em problemas bem maiores. Bem, Paulo diz aos coríntios que “como não há entre vocês quem julgue? Não sabem que os santos julgarão o mundo, e mesmo os anjos? Como então não conseguem julgar uma pequena causa entre vocês?” Paulo tem aqui em foco duas situações de julgamento: litígios entre irmãos e excomunhão de impenitentes. É necessário julgar litígios entre irmãos porque, senão, será impossível chamar o errado ao arrependimento e manter a paz na comunidade. Também é necessário emitir o veredicto de excomunhão caso o irmão errado recuse-se a se arrepender. A Igreja não pode ser tolerante com crentes que vivem em pecado. E deveria passar mais tempo cuidando da própria santidade do que da “santidade” dos descrentes. Pois Paulo mesmo diz em seguida “Não devem vocês julgar os de dentro? Deus julgará os de fora. Expulsem esse perverso do meio de vocês” e, um pouco antes, “Não estou dizendo que não devem se associar com nenhum idólatra ou imoral; do contrário, teriam de sair deste mundo. Mas digo que não devem se associar com ninguém que, dizendo-se irmão, é idólatra ou imoral”. Infelizmente, há inúmeros idólatras e imorais participando da comunhão da Igreja, e ninguém faz nada porque acha que “não deve julgar”. Paulo diz exatamente o contrário.
O mesmo Jesus que disse “não julguem para que não sejam julgados” também disse, em um texto quase desconhecido: “Não julguem segundo a aparência, mas segundo a reta justiça”. Ele diz isso na ocasião da Festa das Cabanas, registrada no evangelho de João. Quando começa a pregar verdades escandalizantes para os judeus cheios de preconceitos e que o acusavam de estar falando pelo demônio, Jesus lhes mostra a contradição das ideias deles e diz isso “Não julguem segundo a aparência, mas segundo a reta justiça”. Ele complementa a ideia de Tiago de não formar leis e juízos nossos, dizendo que devemos julgar segundo a objetividade da justiça de Deus. O Senhor nos revelou o seu caráter e seus mandamentos, descreveu as profundezas do coração humano e até explicitou o fruto da carne e o fruto do Espírito. Ele fez isso não apenas para que cada pessoa individualmente cuide de si mesma, mas para que a Igreja, o corpo de Cristo, saiba administrar a sua santidade coletiva por meio do cuidado e da avaliação mútua. Se não fizermos isso, deixaremos que costumes e regras heréticas entrem na Igreja, e incorreremos em falta de zelo pela noiva do Cordeiro e pelo irmão em risco.
Existe também algo chamado discernimento. Muitas vezes, o julgar é confundido com o discernir por pessoas imaturas. É da vontade de Deus que os irmãos saibam, como diz João, “discernir os espíritos”. Discernimento de espíritos não tem nada a ver com enxergar anjos e demônios por aí, e sim com a compreensão profunda do que há de oculto em cada um quando tal ocultação é refletida pelos frutos. João deu uma boa dica para a sua época, ameaçada pela heresia docética: “o espírito que não confessa que Jesus encarnou é do anticristo”. Quem insistentemente prega heresias e manifesta frutos carnais deve sim ser julgado através da capacidade espiritual dada por Deus à Igreja de discernir. Conforme os exemplos de dons espirituais listados por Paulo aos coríntios, há irmãos com maior capacidade de discernir que outros. Ora, o próprio Jesus disse que conheceríamos os falsos profetas pelos seus frutos. Concomitantemente, há também o provérbio que diz “os propósitos do coração do homem são como águas profundas, mas o homem de discernimento (ou sabedoria) às trará à tona”. Para tal empreendimento, é absolutamente necessário que os crentes estejam cheios de conhecimento das Escrituras e de um espírito transformado pelo evangelho. Do contrário, cairemos em precipitação e seremos condenados pelo nosso obscurecimento.
O equilíbrio entre o julgar e o não julgar é um dos alvos do processo de maturação espiritual. Sem a humildade necessária, seremos precipitados, rancorosos, cheios de justiça própria, cheios de critérios próprios e esqueceremos que nós apenas somos julgados certos por Deus devido à sua graça manifesta em Cristo, e não a nós mesmos; sem a graça de Deus, seríamos todos julgados como igualmente perversos. E, sem a coragem necessária, seremos covardes, complacentes e, na prática, aquiescentes com o erro, pisoteando a santidade e as aspirações do Espírito, dando às costas ao propósito para o qual Jesus deu a sua vida. O evangelho nos dará o equilíbrio.
André Duarte
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