domingo, 27 de janeiro de 2013

Tota scriptura



            “Porque desde criança você conhece as Sagradas Letras, que são capazes de torná-lo sábio para a salvação mediante a fé em Cristo Jesus. Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra” (2Timóteo 3:15-17).
           
Uma das maiores conquistas da Reforma foi o dogma da “sola scriptura” – que somente as Escrituras são o cânon da fé cristã, não tradições e leis humanas. Somente a Bíblia contém a revelação necessária para a vida cristã, o conhecimento de Deus e a sabedoria na justiça. Apenas a Bíblia é infalível e inerrante para nos ensinar acerca de Deus. Além disso, a Bíblia interpreta a si mesma. Não há uma pessoa com poderes divinos capaz de dar a interpretação canônica da Bíblia – ela explica a si mesma. Todo ensino precisa derivar da Bíblia para ser considerado procedente da vontade de Deus.
           
A face complementar da “sola scriptura” é a “tota scriptura” – TODA a Escritura. Significa que a Bíblia não pode ser fracionada em textos mais ou menos canônicos ou necessários, nem deve a compreensão e o estudo serem parciais. Não é só “a Escritura” vagamente, mas toda ela, completa. Não é a parte que você gosta de ler e entende com facilidade + a parte que você deixa pro seu pastor ensinar, se ele achar relevante. Como eu disse, a Bíblia interpreta a si mesma. Isso significa que não é possível assegurar-se de uma interpretação de um texto particular se todos os outros não forem conhecidos. Afinal, como você saberá se a sua interpretação condiz com todo o resto? Não adianta orar para que o Espírito o ajude a entender se a resposta dele é “Primeiro passo é acabar de ler tudo”.
           
Um breve testemunho: sempre ensinaram-me, desde criança, que a Bíblia era a Palavra de Deus e que toda a fé deve ser firmada nela. Comecei a desejar ler a Bíblia aos 8 anos, quando me batizei e fiquei naquela empolgação. Li os 4 evangelhos rapidamente, depois li Atos (numa viagem de carro pra São Paulo, quando eu estava fazendo 9 anos) e cheguei em Romanos. Não gostei do estilo literário. Para mim, textos narrativos eram bem mais legais do que textos cheios de doutrina. Parecia um monte de ensinos óbvios (embora eu perceba agora que eu não estava entendendo nada, era apenas uma mente de criança). Deixei a Bíblia pra lá, achei que já tinha dado. Depois, ainda aos nove anos, tive o tal “encontro com Deus”, voltei a ficar empolgado e resolvi ler de novo a Bíblia. Dessa vez, comecei no Gênesis, pra ver se eu encontrava coisas mais legais. Gostei muito das histórias, cheguei no Êxodo, adorei a história de Moisés e aí começou a interminável descrição do tabernáculo... de novo, parei, larguei pra lá e só recomecei a ler seriamente aos 13 anos (por um motivo errado, ganhar uma garota :P) e, bem, não parei mais. (Sorry, não foi tão breve)
           
Por várias vezes, em meus longos intervalos, eu me perguntava se não deveria voltar a ler. E eu me respondia com a seguinte ideia: “Bem, talvez eu não precise realmente ler tudo. Afinal, eu tenho minha família e minha igreja. Certamente eles já aprenderam tudo o que há de importante na Bíblia e, se eu estivesse fazendo alguma coisa errada, eles me falariam”. Na minha infantilidade, eu não tinha ideia de que a Bíblia e os adultos crentes poderiam estar em desacordo, e nem que os adultos crentes também negligenciavam a tota scriptura. Essa ideia era a única desculpa que eu tinha para não ler. Talvez a Bíblia fosse coisa de gente grande. Eu só precisaria da educação cristã heterônoma...
           
Não faço a menor ideia do motivo da “gente grande” não estudar a Bíblia toda. Não creio que a “gente grande” seja tão ingênua quanto eu era quando criança. Não sei quais são as desculpas. O que eu observo é que, por alguma razão, as pessoas têm textos favoritos da Bíblia – os realmente belos e importantes – enquanto a maior parte é chata. Sim, chata. Somente teólogos – os nerds crentes – se interessariam. Não sei se devo apelar às emoções e lembrar quantos litros de sangue foram derramados para que a Bíblia estivesse no seu idioma, para que você pessoalmente pudesse ler. Quantas vidas foram sacrificadas pelo ideal do livre exame. Para muitos que colocam “protestante” no facebook e se dizem evangélicos, não faria a menor diferença se a Bíblia ainda fosse propriedade exclusiva dos clérigos e ensinada em latim.
           
A grande ironia vem em cima do salmo 119. Um dos salmos mais belos da Bíblia é alvo de piadas. Dizem que é um salmo muito grande, e dá preguiça de ler. Bem, em primeiro lugar, sua extensão tem um propósito artístico. Ele é um enorme acróstico. Cada grupo de 8 versos começa com a mesma letra do alfabeto hebraico, e assim os grupos de sucedem na ordem alfabética. 22 letras do alfabeto hebraico vezes 8 resulta nos 176 versos. E cada um dos versos fala sobre o grande prazer da lei de Deus, a delícia de sua palavra, a perfeição dos seus ensinos. É o salmo metalinguístico da Bíblia, o maior e mais belo texto em que a Bíblia fala sobre a própria Bíblia. Pensem que o compositor exaltou a Palavra de Deus de 176 maneiras diferentes, seguindo uma lógica artística e poética, uma grande obra prima. Mas, para muitas pessoas, é apenas um salmo grande e chato.
           
A alegação da extensão da Bíblia revela uma grande incoerência. A Bíblia não é nem um pouco extensa, se comparada a outros livros. Muitos crentes leem a série Harry Potter, O Senhor dos Anéis, Crônicas de Nárnia, Crepúsculo... e acham a Bíblia muito grande. O conjunto de livros que uma pessoa lê em cada ano do Ensino Médio é bem maior que a Bíblia. Onde ficou a ideia de que a Bíblia é o livro primordial? Por que ler autoajuda se a Bíblia conforta e ensina? Por que ler romances e negligenciar a história mais heroica que já existiu, a vida de Cristo? Por que ler tanta matéria científica e se esquecer de que o logos do universo é uma pessoa, Jesus?
           
A Igreja foi arrebatada pelo secularismo. A leitura da Bíblia foi renegada à tarefa mais chata das obrigações humanas, quando deveria ser considerada o maior prazer e privilégio. Que bom seria se os homens conhecessem melhor a Bíblia do que os games, melhor a vitória do Cordeiro do que as vitórias do seu time de futebol. Passassem mais tempo exercitando a alma do que os músculos. Que as mulheres compartilhassem mais dicas de beleza no espírito do que de maquiagens (1Pedro 3:3,4), que conhecessem mais os ensinos bíblicos do que os novos modelos de Iphone. Que os pais observassem melhor o quanto seus filhos têm se dedicado a estudar a Bíblia do que em vigiar suas notas na escola. Que os filhos procurassem seus pais mais para compartilhar a Escritura do que para pedirem pra ficar fora até tarde no fim de semana à noite. Os frutos do conhecimento da Bíblia são eternos e perfeitamente eficazes e puros na vida presente também. O maior tesouro que Deus colocou para os homens é a sua revelação na Escritura.
           
A Escritura é perfeita para ensinar as boas obras. Ela clareia o caminho da virtude. Ela prova a necessidade da humildade. Ela acusa você dos seus pecados e aponta o caminho do perdão pelo Senhor Jesus. Ela dá sabedoria para diversas questões da vida. Ela ensina o correto desempenho de todos os papéis sociais. Ela conforta o atribulado e atribula o confortado. Ela dá acesso e concretude ao Deus transcendente. Ela protege a Igreja das heresias, tão alarmantes na espiritualidade decadente de hoje. Ela é a defesa contra o diabo. Ela mostra a vereda para a vida eterna. Ela é a instrução da bem-aventurança. Ela mostra o que realmente importa na jornada da vida. Ela ilumina, abre a visão, amplia o entendimento. Ela conduz à adoração. Não partes dela, mas toda ela. Sim, toda ela, inclusive os textos que você não gosta. As genealogias, as descrições do tabernáculo e do templo, os detalhes sobre os tipos de sacrifícios, os recenseamentos, as batalhas sangrentas, os lamentos proféticos, as listas de cidades, as cartas minúsculas, as filosofias de Eclesiastes, as cerimônias de Números, cada profeta, cada história, cada personagem, cada carta, cada martírio, cada visão mirabolante, cada um dos livros é posto com um propósito por Deus nas suas mãos, o propósito de se revelar e de ser, através do estudo do texto, adorado e amado. Jonas é mais do que aquele cara que foi engolido pela baleia. Daniel fez mais do que sair da cova dos leões. Davi ensina mais do que como matar gigantes com uma funda e uma pedra. Abraão é mais do que um velho barbudo, Adão significa mais do que um cara pelado e bobo, Moisés apenas começou seu legado quando tirou Israel do Egito. Jesus...
           
A maior sacada de Martinho Lutero sobre a Escritura é que ela é inteira sobre Jesus. Ela não é um amontoado de dogmas abstratos, de regras morais, de bons exemplos ou de histórias inspirativas. Ela é um testemunho sobre a mais precisa e gloriosa revelação do Deus invisível – a sua perfeita imagem, seu Filho. Ora, Jesus Cristo é chamado de “Palavra de Deus” por João. Ele é o logos divino. Se a Bíblia é a Palavra de Deus, significa que ela deve ser o próprio Jesus Cristo posto em letras. O que torna a Bíblia Palavra de Deus é justamente o seu testemunho constante sobre o centro da fé, Jesus. Por conseguinte, um conhecimento deficiente da Bíblia significa um relacionamento incompleto com Jesus. A estagnação no conhecimento bíblico leva à estagnação no casamento com o Cordeiro – e o mundo sabe como os casamentos estão sujeitos ao enfado da mesmice. Fazendo essa analogia, que tal tentar coisas diferentes no casamento? Por exemplo, estudar textos bíblicos novos? Meditar neles de uma forma diferente? Estabelecer uma nova rotina, ou roteiro de meditação, ou o que for?
           
Não há limites no que se pode chegar ao estudo da Bíblia. Sempre estamos aprendendo mais e amadurecendo na adoração. A única maneira de alguém achar que já sabe o suficiente é parando de ler, e essa pessoa estará tão enganada quanto alguém que nem conhece o evangelho.

André Duarte

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