O livro de
Jó é um dos mais belos da Bíblia, com sua estrutura exclusiva, pessoalidade
intensa e, mesmo assim, ensinos eternos. É também um livro facilmente mal
compreendido devido à mistura de conceitos certos e errados que os personagens
declaram em seus discursos. Quero abordar alguns pontos essenciais do livro,
sem entrar muito em frases específicas.
Sabemos que
o livro de Jó versa sobre o sentido do sofrimento. Mesmo assim, ele não reponde
exaustivamente a quaisquer questões humanas sobre o “problema do mal”. Mas, há
parâmetros muito bem definidos sobre os quais podemos meditar. Em primeiro
lugar, desde o início do livro, fica totalmente claro que o sofrimento está sob
o controle direto de Deus. Não há mal algum que ocorra no mundo que fuja ao
desígnio de Deus. O relato de Jó não pode ser algum caso excepcional, mas é um
exemplo vívido e íntimo dos princípios declarados nas Escrituras sobre a
soberania de Deus no sofrimento. Satanás solicita que Deus decrete a ruína de
Jó, mas Deus é quem define os exatos limites do mal ocorrido; não há o menor
detalhe que escape ao plano de Deus. E esse já é um pensamento confortador para
nós, que sofremos. Davi compreendeu isso muito bem quando teve de escolher
entre os castigos oferecidos por Deus (2Samuel 24), e ele optou pela espada do
anjo de Deus, declarando “Prefiro cair nas mãos de Deus a cair nas mãos dos
homens, pois grande é a sua misericórdia”. Seria terrível se o sofrimento no
mundo fosse controlado por homens. Mas, Deus, comprovadamente misericordioso e
amoroso, controla o sofrimento de forma perfeitamente sábia, mesmo que não
compreendamos isso totalmente. Agora, a intenção de Satanás não é a mesma de
Deus com o sofrimento de Jó. Satanás queria que Jó pecasse para poder acusá-lo;
Deus, porém, tinha um motivo bem melhor. É o que o fim do livro mostra.
Vamos olhar
mais de perto o personagem Jó. Ele era realmente tão bom quanto publicamente se
diz? Ele obviamente não era perfeito e tinha pecados. Também havia uma
motivação errada em seu esforço para cumprir as leis de Deus. Realmente, ele
havia se tornado especialmente justo e sábio, em comparação com outros homens.
Mas os seus discursos nos dão indícios do porquê ele era tão correto. Ele tinha
medo de Deus. Ora, ele até mesmo oferecia sacrifícios diariamente para cobrir
algum pecado hipotético dos seus filhos. Isso não é um grande exemplo de
piedade, mas de desconfiança da misericórdia de Deus. Jó não conhecia nada
sobre a graça de Deus, e ele mesmo declara, no final, que apenas sabia sobre
Deus por ouvir falar. Quando a desgraça bate à sua porta, ele resiste por um
tempo, submetendo-se a Deus. Mas não dura muito. O seu espírito quebra, porque
todos os seus axiomas sobre a vida baseavam-se na justiça humana. No seu
primeiro lamento, ele diz “o que eu temia me ocorreu”. Jó confiava em si mesmo
como salvador de sua vida. Ele pensava que obteria o favor de Deus por viver na
mais estrita moral. Suas esperanças foram destruídas, porque Deus não se deixa
ser controlado. E assim somos todos nós, legalistas, moralistas, que só
obedecemos a Deus para o nosso próprio benefício, e não por amor.
Talvez você
esteja surpreso em perceber que Jó não é o grande herói da justiça como se diz
por aí. Essa história não é de um justo que permaneceu justo o tempo todo e nos
ensina pelo exemplo, mas sim de um pecador legalista que, por meio do
sofrimento, descobriu a graça de Deus. Quem dera todos os legalistas aprendessem
isso a cada vez que seus ídolos são destruídos. Agora, vamos ver o que Jó
conclui disso tudo. Seus discursos são muito interessantes, porque mostram uma
progressão dos axiomas legalistas. Veja se, lá no fundo, o seu coração não quer
dizer a mesma coisa.
Os
primeiros discursos de Jó são um grande lamento irracional. Claro que, pela
perda que ele sofreu, sua angústia é compreensível. Ele descreve todo o mal que
está sofrendo, e como ele deseja morrer logo para dar fim à dor. Suas
descrições sobre Deus são extremamente aterrorizadas. Fica óbvio que ele nada
sabe sobre a misericórdia de Deus. Jó reconhece o pleno poder de Deus, mas
esvazia-o de toda bondade. Deus é declarado como um sádico, que fere os
inocentes por diversão, que trai a confiança dos justos. E Jó diz essas coisas
ainda imerso em terror, sem raciocinar tão bem. Ele fica com tanto medo de Deus
que nem consegue orar a ele por restauração. Quando somos abatidos pelo
sofrimento, também tendemos a essa abordagem a Deus. Sua misericórdia tão
falada parece uma abstração, enquanto seu poder para causar o mal é vividamente
sentido. Talvez não cheguemos ao extremismo de Jó, mas, mesmo assim, a tristeza
que sentimos embaça nossa visão do Deus de amor.
Após tantos
desabafos, Jó consegue raciocinar melhor, mas ainda mais erronamente. É certo
que ele muda de atitude. Nos primeiros discursos, ele dizia coisas como “Não
consigo me defender, jamais ousarei apelar a Deus”, e depois ele passa a dizer
“Já preparei a minha defesa, já posso falar a Deus em seu tribunal”. Jó
consegue se consolar um pouco e mostrar vislumbres de esperança. Isso parece
bom, mas é ao pior nível que um legalista pode chegar. Porque suas boas
esperanças baseiam-se na justiça própria. A ideia de Jó é “quando eu apelar a
Deus, ele terá de me salvar. Pois,
como ele é perfeitamente justo, ele não
poderá me condenar, pois eu também sou justo e nunca fiz nada errado”. Por
vezes, Jó fala sobre Deus ver o seu pecado, mas ele fala apenas como hipótese.
Como se dissesse “Deus está vendo pecado onde não existe, então ele terá de
mudar de ideia e me salvar”. Não é isso que o nosso coração quer nos dizer
quando somos abatidos por Deus? Eu já pensei isso várias vezes. É natural que a
mente reorganize seus conceitos para superar o sofrimento. Mas esse rearranjo
geralmente leva à mais profunda idolatria própria. Mesmo inconscientemente, é
fácil pensarmos “Bem, alguma hora, Deus vai me livrar, pois eu vou convencê-lo
a fazer isso pela minha fidelidade e perseverança”. Você faz isso quando
empreende correntes de oração ou jejum com a ideia de “No final de todo esse
programa, com certeza Deus vai me favorecer”. Eu sei como é isso. Quando
adolescente, eu ia a todas as vigílias só para Deus ver como eu sou piedoso pra
ele responder minhas orações logo. Pensamos, nesses casos, que Deus está
“testando nossa fé”, como ele fez com Jó, pra ver se nós somos bons mesmo. Aí
está a chave: Deus nunca teve o propósito de testar a fé de Jó. Jó mesmo nunca
passou nesse suposto teste. Deus o restaurou no final apesar de seus conceitos,
não por causa deles. Como alguém pode pensar que Jó é o máximo após o seu
último discurso, antes de Eliú aparecer? O que Jó diz é basicamente “que Deus
me destrua se eu fiz algo errado – mas, ei, eu não fiz nada errado!” É o mesmo
que o fariseu da parábola de Jesus diz – “Deus, agradeço por eu não ser ladrão
e mau como as outras pessoas”, ou como os bodes em Mateus 25, dizendo “Mas,
Senhor, quando foi que não cumprimos essas boas obras?”.
Antes de
chegar na parte de Deus, temos de compreender também a abordagem errada dos
amigos de Jó. No geral, eles falam coisas verdadeiras e bíblicas sobre Deus. O
problema é que eles tentaram interpretar a situação com base em seus
preconceitos. Eles querem passar a ideia de que Jó foi abatido por Deus por ter
cometido algum pecado que traga esse nexo causal. Dessa forma, eles também
pregaram justificação por boas obras, pois a conclusão do que eles dizem é
“Pare de pecar, e Deus vai restaurá-lo” – como se fosse possível chegar a um
estado de pureza de qualquer pecado. Também falharam em consolar o amigo. Mesmo
irmãos crentes podem ver o sofrimento do outro e pensar “Hmm, ele deve ter
feito algum pecado pra sofrer assim”. Como se alguém estivesse sem pecado. Os
amigos de Jó o julgaram erroneamente. Realmente, Jó tinha pecados, mas ninguém
pode ler a vida do outro e imediatamente atribuir o seu sofrimento ao pecado,
pois Deus tem múltiplos propósitos para causar sofrimento.
Eliú foi o
único que falou corretamente. Ele repreendeu Jó por sua alegação da própria
justiça infalível e ressaltou a soberania de Deus e sua pureza acima de
qualquer comparação. Logo em seguida, Deus resolve pessoalmente explicar a Jó o
lugar certo das coisas. No magnífico discurso de Deus, ele humilha o coração de
Jó, dando dezenas de exemplos da pequenez dele e da perfeição das obras de
Deus. O mesmo Deus que criou um mundo tão belo e infalivelmente funcional
obviamente não pode ser constrangido por um mero humano. A criação de Deus é uma
revelação de seu poder e de seu amor, e Jó nunca havia se dado conta disso. Veja
o salmo 8, ou o 104, em que os autores reconhecem os atributos de Deus e sua
grande misericórdia na maneira como ele fez o mundo. Jó não conhecia a Bíblia,
pois ela ainda estava longe de ser escrita. Por isso, Deus usa a sua revelação
na criação para mostrar a Jó a verdade sobre si. Somente então Jó cai em si e,
como nunca antes, converte-se a Deus de toda a sua alma. Agora, Jó sabe quem
ele é e quem Deus é. Finalmente, Jó foi atingido pela graça de Deus. Esse era o
propósito de Deus com o sofrimento. É sofrendo que conhecemos quem Deus
realmente é.
Jó não é o
grande herói da perseverança, mas o Filho de Deus é. Jesus Cristo é o
verdadeiro Jó. Ele sim era totalmente inocente. Ele sim poderia dizer sobre sua
justiça tudo o que Jó disse sobre a dele. Mas Jesus não fez isso. Ele suportou
o máximo do sofrimento, em perfeita inocência e pureza, pois ele sabia que nós
falharíamos tão terrivelmente quanto Jó se tivéssemos que nos provar para Deus.
Nada há de mais sofrível do que suportar a ira completa de Deus sobre nossos
pecados, e Jesus o fez por nós. Não deveria ser humilhante para nós, que
pensamos “Deus precisa me ajudar, pois eu sou tão fiel”, sendo que o único que
foi realmente fiel jamais tentou controlar Deus dessa forma? Se o perfeito
Cristo, que tinha pleno mérito, que era o próprio Deus, foi um servo humilde,
quanto mais nós devemos ser! Não estamos poupados de sofrer como Jó, mas sim de
sofrer como Cristo. Sua inocência nos é imputada pelo seu sacrifício na cruz,
ao mesmo tempo em que o nosso castigo é transferido para ele. Jó teve de
aprender sobre a graça de Deus pela revelação na natureza, mas nós temos a
máxima revelação desse amor, a própria pessoa de Jesus Cristo, testemunhado
pelos apóstolos e pelo Espírito em nós.
E hoje,
assim como o Jó restaurado orou e ofereceu sacrifício para Deus perdoar seus
amigos injuriadores, também Cristo intercede por nós, como o perfeito e eterno
sumossacerdote, pelo perdão do Pai. Jesus não mais precisa oferecer-se em
sacrifício, pois ele já fez isso de uma vez por todas. A eficácia de sua oferta
é plena, e é para isso que Cristo apela diante do Pai. Como os amigos de Jó o
acusaram de pecado impensadamente, também nós acusamos Deus de erro, cuspimos
em Jesus, clamamos pela sua crucificação. Todos nós, chamados para ser amigos
de Deus, rejeitamos o seu Filho e o traímos. Mas o mesmo Senhor que sangrou na
cruz ressurgiu dos mortos em perfeita majestade e glória. E hoje ele usa seu
poder para perdoar os seus caluniadores, nós. Se temos algo em que imitar Jó, é
em sua conclusão na sua conversão: “Arrependo-me no pó e na cinza”.
André
Duarte
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