O cristianismo renovado das últimas décadas é marcado por
uma ênfase na chamada batalha espiritual. Há livros e mais livros ensinando
como fazê-la, pregações a respeito disso e inteiras teologias com esse centro. Entendo
bem essa crença, porque eu fiz parte dela durante o começo da minha
adolescência. Era viciado na literatura de Daniel Mastral e Rebecca Brown. E,
de fato, o fundamento da teologia da batalha espiritual, da maneira épica que é
ensinada hoje, é esses livros de testemunhos pessoais.
Uma mania
que o próprio Daniel Mastral registra em seu testemunho é justamente que os
crentes adoram livros de ex-satanistas. Ele mesmo percebeu que esses relatos
sobre demônios e magia negra incitam a curiosidade dos cristãos que acabam se
fascinando por um sobrenatural cheio de guerra medieval e mágica. São cristãos
usando métodos espirituais, ajudados por anjos com espadas, em guerra contra
satanistas e suas magias com demônios horrendos, e a vitória dependerá da
quantidade das orações, clamores e santificação. A soberania de Deus sobre essa
batalha fica deixada de lado. Deus não decide muita coisa, ele espera que nós
façamos tudo. É isso que a ficção do Este Mundo Tenebroso mostra: pessoas,
anjos, quantidade e frequência de orações, e nada de Deus.
O problema
é que testemunhos de ex-satanistas não são canônicos. Não interessa o que eles
dizem que experimentaram. Imagine se os ensinos que um ex-satanista aprendeu
podem servir de complemento à Bíblia! E esses livros não demonstram uma mudança
de pensamento quando da conversão desses autores. Quando você lê, por exemplo,
Filho do Fogo, um monte de heresias estão lá, mas você pode pensar “Ah, mas ele
era satanista e aprendeu tudo errado mesmo, normal”. Mas, quando você continua
a saga em Guerreiros da Luz, as mesmas bobagens mágicas são ensinadas, com a
única diferença de que é Deus quem ganha no final. Rebecca Brown também conta
de sua conversão no Ele Veio Para Libertar os Cativos, mas seus livros de
crente repetem a percepção errada sobre Deus que ela aprendeu com satanistas.
Complementos à Bíblia a partir do que os supostos ex-satanistas viveram não
podem ser aceitos. Se nem a sua experiência pessoal pode servir de cânon
equiparável à Bíblia, muito menos a experiência de algum outro.
Batalha espiritual não pode ser o centro da vida cristã.
Não é nem mesmo um tema relevante para que a Bíblia explique. Precisamos,
então, dar uma olhada em certos textos que são frequentemente adaptados ao
pressuposto da batalha espiritual, mas que não têm nada a ver. Para começar, o
famoso Efésios 6. Ah, o texto mais lido de Efésios, a armadura do cristão. O
que esse texto ensina? Lembre-se de que a Bíblia é centrada e fundamentada na
salvação em Cristo. O texto não ensina sobre o revestimento da armadura para a
proteção contra ataques do diabo às circunstâncias da vida. Isto é, em primeiro
lugar, pare de pensar em diabo quando você está com algum problema. Se é que
você é um salvo, se é que você está em Cristo, os seus problemas não são
causados por demônios. No máximo, demônios podem ser usados por Deus para
cumprir o propósito dele na sua vida. Mas quem manda na sua vida é Deus, não o
diabo. Se você ficou doente, se você perdeu o emprego, se você foi assaltado,
se você tem problemas no casamento, a causa dessas coisas é Deus, não demônios.
As circunstâncias desagradáveis são determinadas por Deus, seja para construir
uma maturidade espiritual melhor em você, seja para fins disciplinares por
conta de algum pecado ou erro.
Se o diabo não ataca as circunstâncias da sua vida, então
ele ataca o quê? Ele ataca a sua relação com Deus. Seus intentos são para levar
você a pecar e ofender o Senhor e, assim, ele pode acusar você diante de Deus.
É para isso que você precisa da armadura. O problema é o seu pecado, não suas
dificuldades na vida. Não desvie o foco daquilo que Deus considera importante.
Bem, nesse caso, como fazer esse revestimento da armadura? Ocorre que a
armadura é uma metáfora, não um elemento mágico. Existem muitas pessoas que
realmente imaginam uma armadura invisível e um ataque de espadas e arcos. Mas a
metáfora da armadura nada mais comunica a não ser valores cristãos
fundamentais. Veja a consistência dela: justiça, verdade, testemunho, salvação,
fé e palavra de Deus. É comum ver pessoas orando para serem revestidas dessas
coisas. A pergunta consequente é: por que você estava sem elas antes? Todos os
salvos usam essa armadura. Se você não tem a justiça dada por Cristo, se nega a
verdade encarnada, se não testemunha do evangelho, se não tem a salvação, se
falta a fé em Jesus, se não tem Bíblia... bem, fica bem óbvio que essa pessoa
nem crente é. A armadura é uma metáfora da consistência da vida cristã,
simplesmente. E essa armadura protege você de ser tragado pelo maligno para se
afastar de Deus. Um ensino básico dado em todo o Novo Testamento, apenas dito
com essa linguagem bela em Efésios 6. Agora, você pode aplicar esse mesmo
fundamento em textos como “O diabo anda ao redor de nós, rugindo como um leão”.
A reação a isso não é medo, paranoia e declaração de guerra. É simplesmente
manter-se fiel à aliança, confiante na salvação em Jesus.
Outro texto comumente compreendido erroneamente é o de
Daniel 10, em que há uma luta entre o anjo que fala a Daniel, o anjo Miguel e o
tal príncipe da Pérsia. (Ensinaram-me, quando criança, que eu não podia jogar
Príncipe da Pérsia, porque é o demônio da Bíblia...) Aparentemente, existem
anjos em conflito aqui. Embora haja interpretações judaicas diferentes – por
exemplo, que Miguel e o príncipe da Pérsia não são anjos, e sim nomes das
autoridades nas nações -, a interpretação do conflito de anjos é mais coerente
e natural. Bem, para se entender essa luta, é necessário saber o que o resto da
Bíblia ensina sobre a relação de anjos com Deus. A Bíblia frequentemente
descreve os seres celestiais deliberando no céu tendo Deus como autoridade. Em
1Reis 22, por exemplo, Deus reúne os anjos e pede sugestões de como enganar o
rei Acabe para que ele morra na guerra, e cada anjo se manifesta com uma ideia.
Zacarias dá o exemplo de Satanás acusando o sumossacerdote Josué, e um anjo
repreendendo-o em nome de Deus. O céu é revelado como um tribunal. Na noção
moderna de batalha espiritual, a figura do tribunal é substituída pela figura
do exército. As falas viraram armas.
E é assim
que costumamos imaginar esse texto de Daniel 10: um anjo indo até Daniel e
sendo detido no caminho por um demônio autônomo, iniciando algum duelo de
espadas, até que Miguel chega e toma parte na briga. Essa imagem está em
desarmonia com as descrições de tribunal. Em nenhum momento o texto diz que
essa luta foi de natureza bélica. É bem mais coerente pensarmos em uma
apresentação de causas diante de Deus por parte dos anjos. Mesmo porque não se
pode conceber um conflito entre anjos no qual a decisão soberana de Deus está
ausente. Anjos não são autônomos, e isso incluí obviamente demônios. Lembremo-nos
do que diz a oração do Pai nosso: “Seja feita a tua vontade, assim na terra
como no céu”. Essa petição pressupõe que, no céu, a vontade de Deus é cumprida
perfeitamente (conforme a Confissão de Westminster, por exemplo). Ou seja, não
há bipolaridade nos poderes celestiais. Não existem anjos brigando contra
demônios. O que existem são deliberações nas quais Deus decide o que é feito. E
se você pensar “ah, mas demônios não estão inclusos no céu”, lembre-se de que,
tanto no prólogo de Jó como no texto de 1Reis 22, os demônios estão no céu com
os outros anjos diante de Deus. Se você ainda imagina Satanás e os demônios
reinando no inferno, afastados daquela brancura do céu, sugiro que clique no tag “anjos” e leia os posts sobre
Satanás.
Para
terminar, uma perguntinha: você já reparou que houve pessoas na Bíblia que
ficaram empolgadas com batalha espiritual, e que elas foram repreendidas por
Jesus? Refiro-me ao retorno dos discípulos de Jesus da segunda vez em que
foram enviados para pregar por aí (Lucas 10:17-20). É daí que vem o versículo famoso do “eis que
vos dou poder para pisardes cobras e escorpiões e todo o poder do inimigo”.
Recortar esse versículo dá exatamente o sentido contrário da pretensão do
ensino de Jesus. Pois ele responde isso quando os discípulos voltam empolgados,
dizendo “Senhor, até os demônios se submeteram à nossa ordem!”, e Jesus, após
dizer aquele versículo, complementa com o “porém, não vos alegrais porque os
demônios se submetem a vós, e sim porque os vossos nomes estão no livro da
vida”. Essa parte, parece que ninguém lembra. Veja o que Jesus diz: alegrem-se
em sua salvação! O poder contra demônios é o de menos. O centro da nossa vida
deve ser a nossa salvação pela graça de Deus. Pense no evangelho, deixe como
nota de rodapé esse fanatismo por exorcismo.
Sendo
assim, como devemos entender as dificuldades da vida? Em primeiro lugar, não
existe problema nenhum em sofrer e passar problemas. Geralmente, quem fica
pensando em batalha espiritual faz um drama desnecessário e até idólatra com os
probleminhas do cotidiano. A pessoa é uma satanista e está me perseguindo –
apenas porque um colega teve alguma antipatia. É o pneu do carro que furou
porque os demônios estão me pegando. Alguém ficou doente – é obra do maligno, é
a macumba do vizinho. Esse tipo de pensamento, embora pretenda enxergar o
sobrenatural, na verdade, tem o foco fixo neste mundo passageiro e sombrio. Se
você se alegra na esperança do reino de Deus, não dará esse valor exagerado às
pequenas dores da vida.
Essa
cosmovisão errada afeta a maneira como oramos também. Nossas orações são
voltadas para a repreensão ao poder do mal. Eu reparei que, quando as pessoas
fazem uma roda de oração, a maioria das cláusulas recebe um “amém”, mas, quando
a pessoa clama por alguma variante do “toda seta do maligno caia por terra”, o
resultado é o maior amém de todos. Se você não percebeu isso, é só prestar
atenção, chega a ser cômico. O foco e as emoções realmente estão em Satanás.
Ele parece bem mais palpável e próximo do que Deus, e isso é um erro grave. Não
há nenhuma oração na Bíblia que se dirija a Satanás; não somos autorizados a
nos dirigir a ele em oração. Também não há necessidade nenhuma de mencionar sua
possível atuação nas circunstâncias pelas quais oramos, pois Deus sabe
exatamente se ele está lá ou não, e sabe precisamente como fazer. Deus não
precisa que cubramos todas as hipóteses para as causas sobrenaturais em nossas
orações, porque ele já sabe – e não apenas sabe, mas também não revelou a nós.
Ore a Deus, ele sabe o que fazer.
André
Duarte
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