Para
terminar essa série, vamos analisar o relato da queda, o que isso significou
para a criação e para a posteridade, e como essa queda seria solucionada. Eu
saltei o importante trecho em que Deus ordena a Adão para que ele trabalhe no
jardim. Esse é um tema importante, mas, sinceramente, eu não me julgo
competente para comentar sobre ele. Na minha carnalidade, ainda tenho uma visão
negativa sobre o trabalho. Por isso, vou direto à queda, isto é, ao momento
catastrófico em que a aliança de Deus com a humanidade foi rompida, mas não a
sua graça.
Dentre
todas as árvores do jardim, duas se destacavam: a árvore da vida e a árvore do
conhecimento do bem e do mal. A árvore da vida, conforme é demonstrado posteriormente,
dava ao homem vida enquanto do seu fruto ele comesse. Já a outra árvore dava
fruto que, se provado, causaria a morte. Ainda em preparação para o relato da
queda, o texto diz que o homem e a mulher não sentiam vergonha de sua nudez. Não
havia por que esconder nada, não havia motivo para bloquear a transparência.
Sem pecado, a humanidade não sentiria necessidade de criar nada que
representasse uma persona, pois nada haveria de vergonhoso para ser ocultado.
Surge então
a misteriosa serpente. Como compreendê-la? É óbvio que Satanás está atuando
por ela, pois ele é sempre o tentador da humanidade no resto da Bíblia. Seria a
serpente o animal comum que conhecemos? Neste ponto, eu tomarei um rumo mais
heterodoxo. Não penso que era uma serpente literal e física, não entendo por
que todas as serpentes do mundo seriam castigadas devido ao erro de uma
serpente ancestral. Não se pode aplicar uma analogia do castigo à descendência
da humanidade, pois, na realidade, todo homem depois de Adão é praticante do
pecado e merecedor do castigo; o mesmo não ocorre às serpentes. Devido à poesia
do texto hebraico, acredito que a serpente seja um ente imaginário, uma
extensão personalizada das pulsões humanas. Afinal, o humano foi criado sem
pecado, mas já com tendência à transgressão, com um impulso para a rebelião. Do
contrário, não teriam se deixado seduzir. O termo para “serpente” no hebraico é
escrito de forma muito semelhante à palavra “desejo”, como se houvesse um jogo
de palavras. O diálogo de Eva é feito com ela mesma, e é uma descrição fascinante
de como o humano resolve e satisfaz internamente o seu senso de justiça e o seu
mau desejo simultaneamente – como o conflito entre um id e um superego é
solucionado. Não é dessa forma que nós também nos convencemos a desobedecer a
Deus? Não é assim que também caímos nas doces e venenosas sugestões do diabo
para seguir os seus planos?*
Talvez a
noção pressuposta de que o homem e a mulher eram ingênuos antes da queda
atrapalhe o entendimento acima descrito. Costumamos pensar neles como seres de
mente infantil e boba, porque eles não tinham o conhecimento do bem e do mal. Mas
o termo “conhecimento” precisa ser devidamente compreendido. Não é que os
humanos eram mentalmente amorais. Afinal, se eles sabiam que não deveriam comer
da árvore para não morrerem, no mínimo, eles sabiam que desobedecer a Deus
nesse sentido era um mal. Eles tinham o conhecimento teórico de bem e mal; o
que não tinham era a experiência. Eles não haviam ainda experimentado o mal e
suas consequências. No entanto, a mente humana, desde o princípio, preferiu
voluntariamente o caminho de Satanás ao caminho de Deus.
E como Eva
enganou-se? Em primeiro lugar, a serpente sugestiona um exagero absurdo na
ordem de Deus: ele proibiu todos os frutos do jardim. Essa frase representa o
ódio generalizado contra a lei divina e seu caráter percebido como grandemente
cerceador, intromissivo e desproporcional. Eva, em sua razoabilidade, responde
ao seu “id” que, na verdade, Deus só proibiu o fruto da árvore do conhecimento,
mas acrescentando uma sutileza: que Deus proibiu tocar no fruto. Deus nunca disse que era proibido tocar, mas apenas
que era proibido comer. Eva, mesmo contrariando a sugestão da serpente, já se
mostra por ela enganada em um aspecto quase imperceptível sobre a ordem moral.
Isto é, ao mesmo tempo em que Eva rejeita a sugestão da serpente, acaba
revelando-se já influenciada, distorcendo apenas no detalhe o comando divino. O
senso moral combate o impulso, mas não sai incólume desse conflito.
A
contrapartida da serpente é contestar o espírito da ordem moral
ressignificando-a. Isto é, a serpente não disse uma mentira completa, como da
primeira vez. Ela adaptou a ordem de Deus aos interesses da Eva. E, ainda,
instigou-a a duvidar do caráter de Deus, insinuando que Deus estava com temor
de que Eva se tornasse como ele. Veja que, na literalidade, tudo o que a
serpente disse é verdade. Eva realmente não morreu fisicamente quando provou do
fruto e realmente se tornou conhecedora como Deus, como Deus mesmo diz no
versículo 22. Mas a maldade por trás da desobediência mostrou-se presente. O
senso moral de Eva ficou satisfeito com o argumento do mau impulso. O desejo de
sentir-se divino dominou a vontade do ser humano, e a sua incredulidade quanto
aos preceitos de Deus teve o seu início. É notável que o domínio do pecado
sobre o homem consiste na sua ausência de fé em Deus, na sua rejeição do que
ele diz e no prazer em se tornar um deus. Essa é a idolatria a si mesmo que
todo homem tem. Fraquejado pelo impulso maligno, o senso de justiça cede, sofre
uma reprogramação e relativiza a moral divina para benefício próprio.
É
importante notar também que a tentação ao pecado é extremamente prazerosa.
Quando imaginamos o diabo, pensamos em alguém horrendo, mas não é assim que ele
se apresenta. Em nossa segurança, imaginamos a prática do pecado com grande
desgosto e amargura, mas, quando o momento realmente vem, o prazer carnal é
vívido. Eva percebeu que o fruto era belo, que parecia delicioso. E ainda foi
seduzida pelo fim dele, que é dar conhecimento sobre bem e mal. A tentação
carnal é real e não deve ser subestimada. Eva comeu do fruto, ignorando a
orientação de Deus e tudo de bom sobre a sua sabedoria que ele já havia
confirmado, e levou ao marido pra ele também comer. Instigado pela mulher, o
que o homem não faz? Facilmente Adão foi seduzido e transgrediu. Nesse momento,
tanto Adão como Eva representam toda a humanidade posterior. A figura de Adão é
mais enfatizada no Novo Testamento. Romanos 5 diz que Adão foi o início do
reino da morte, pois em Adão todos pecaram e morreram. Mas Cristo, o perfeito o
homem, a plena imagem de Deus e o supremo marido cumpriu todo o propósito no
qual Adão falhara. Jesus, pelo seu ato sacrificial, imputou a todos justiça e
vida, tal qual Adão havia imputado morte pelo seu ato pecaminoso.
O que se
segue é uma total catástrofe. Para começar, o casal percebe sua nudez e se
envergonha. O senso de imoralidade domina a alma e cria a necessidade da
persona. O homem nunca mais revelaria quem ele é, pois o pecado traz o medo da
transparência e a segurança na mentira. Em seguida, o casal se esconde de Deus.
Tamanha ingratidão a do homem primitivo e a nossa! Desde esse dia, também
buscamos inutilmente nos esquivar de Deus, fechando os ouvidos para a sua palavra
e criando nossa ilusionaria zona de estabilidade centrada em nós mesmos. Deus,
porém, questiona o homem sobre o que ele fez. O marido, corrompido e ímpio,
agora manchado pelo pecado, coloca a culpa na mulher e também em Deus – “a
mulher que tu me deste”. Aquele que foi designado para proteger e zelar pela
mulher tentou jogar para ela a responsabilidade. Preferiu que ela sofresse,
quando deveria dizer “Senhor, castigue-me em lugar dela” – que foi justamente a
atitude de Jesus em sofrer a ira no lugar de sua noiva. E Adão ainda se ira com
Deus, como se o culpado fosse Deus de colocar a mulher para induzi-lo ao erro.
Como diz o Provérbios 19:3, “É a insensatez do homem que arruína sua vida, mas
o seu coração se ira contra o Senhor”. Que maldade, que terror, especialmente
porque nós repetimos a mesma história. Eva simplesmente repete o mesmo
raciocínio e culpa a serpente, como se fosse algo externo a ela que fosse
responsável pelo pecado, e não ela mesma. Ainda hoje, as mulheres sofrem esse conflito
entre a sua vontade moral e a vontade de seus instintos. Os homens também,
claro, mas é mais explícito no caso das mulheres.
Deus dá o
castigo a cada parte como cabe. Por causa do homem, Deus amaldiçoou toda a
criação. O pecado teve consequências globais. Por isso, Romanos 8 diz que a
criação aguarda ansiosamente pelo dia da redenção. Também, diz Colossenses,
Deus reconcilia em Cristo todas as coisas, inclusive as que estão no céu. Pois
todo o universo foi afetado pela queda do homem. E o homem sofre porque a
criação não mais coopera com o seu domínio. O castigo da mulher é também
facilmente visível: a sua sujeição ao marido tornou-se uma escravidão, uma
opressão, como a história tem atestado sempre. A mulher deixou de ser vista
como amiga para tornar-se posse. Em Cristo, porém, “não há judeu ou grego,
homem ou mulher, escravo ou livre”. Jesus, sendo o perfeito marido, resgatou a
mulher para a sua condição de amiga auxiliadora. Nele, as mulheres se libertam
da maldição da queda.
A maldição
comum ao homem e à mulher é a separação da árvore da vida. Deus, vendo que o
homem tornou-se conhecedor do bem e do mal como ele, não mais permitiu que ele
vivesse para sempre. A punição de Deus foi, realmente, a morte, conforme ele
havia alertado. O homem pecador e experimentador do mal não mais viverá para
sempre. Agora, você já reparou o que nós vemos no Apocalipse? Olhe o 22:2, a árvore
da vida sendo devolvida aos salvos. Pela salvação do Cordeiro, que sofreu a
maldição do Gênesis por nós, que voluntariamente afastou-se da árvore da vida
para oferecer-se em sacrifício, temos novamente acesso à vida eterna.
Mas a
maldição mais significativa está no castigo da serpente. Deus condenou a
serpente a rastejar, de forma que morda o calcanhar do descendente da mulher e
seja por ele esmagada na cabeça. Essa figura é real para a literalidade de um
humano lutando com uma cobra, mas lembre-se do que essas coisas significam
aqui. A serpente, simbolizando o pecado e, por detrás, a atuação do diabo,
morderia o descendente da mulher. Isso ocorreu quando o Senhor Jesus, descendente
de Eva segundo a carne, foi assassinado por uma multidão de filhos do diabo.
Entretanto, nesse mesmo momento, Jesus esmagou Satanás e o pecado. Hebreus 2:14
diz que Jesus derrotou o diabo, que tinha o poder da morte, e Colossenses 2:15
diz que Jesus trinfou sobre os poderes e autoridades na cruz, isto é, o
legalismo que dava pulsão ao pecado. Desde Gênesis 3:15, sabemos que viria aquele
para triunfar sobre a serpente após ser por ela ferido, para que o paraíso seja
restaurado, para que o acesso à árvore da vida seja novamente dado a nós pela
graça de Deus.
Para
encerrar, uma última consideração. Existe sempre a pergunta do porquê Deus
colocou a maldita árvore se ele sabia que o homem pecaria. A resposta mais
comum é que Deus queria que o homem lhe servisse por sinceridade e vontade
própria, tendo a possibilidade de escolher não fazê-lo, pois Deus não queria
adoradores mecânicos. Minha opinião vai para outro rumo. Em primeiro lugar,
porque a Escritura deixa claro que o homem é tendente ao mal desde sempre, e
não havia possibilidade alguma da queda não ter acontecido. Segundo, porque,
filosoficamente, não é necessário fazer separação entre a sinceridade e a
obrigatoriedade. Se o homem fosse obrigado a adorar a Deus, seria uma adoração
perfeitamente autêntica, e não há por que duvidar disso. Afinal, a adoração que
prestaremos na eternidade será totalmente obrigatória, não haverá mais como
cair de novo, e nem por isso ela deixará de ser genuína. Meu pensamento é que
Deus colocou ao homem a fatalidade da queda para construir a relação de graça
posteriormente. Através da queda, Deus revelou a si mesmo e atraiu glória para
si mesmo. Em certo sentido, nós conhecemos Deus melhor do que Adão jamais
conheceu. O Adão antes da queda não tinha pecado. Como ele poderia conhecer a
misericórdia e a graça de Deus? Como ele poderia conhecer a sua soberania sobre
o mal? Não estamos acostumados a pensar assim. Mas a realidade é que Deus,
através do seu resgate por nós, do seu triunfo sobre o nosso pecado, revela-se
a nós e recebe glória de forma que não seria possível se o mundo fosse sempre
um paraíso. Deus é soberano sobre a história e se faz conhecido por todo o
mundo em todo o tempo. A ele é devida toda a gratidão e a adoração.
André
Duarte
*Após a publicação deste post, fui convencido por um caro irmão de que minha opinião que eu reconheci como heterodoxa estava errada. Preferi seguir uma interpretação mais judaica da "metáfora" da serpente e não percebi que ela não era coerente com princípios cristãos relativos à queda da natureza humana e de sua regeneração pelo evangelho. Hoje, vejo que a serpente era, realmente, um ente externo movido por Satanás, e não uma projeção da natureza humana corrompida de Eva; se ela já houvesse sido criada com natureza caída, a regeneração espiritual pelo evangelho ao estado livre da humanidade criada não faria sentido.
*Após a publicação deste post, fui convencido por um caro irmão de que minha opinião que eu reconheci como heterodoxa estava errada. Preferi seguir uma interpretação mais judaica da "metáfora" da serpente e não percebi que ela não era coerente com princípios cristãos relativos à queda da natureza humana e de sua regeneração pelo evangelho. Hoje, vejo que a serpente era, realmente, um ente externo movido por Satanás, e não uma projeção da natureza humana corrompida de Eva; se ela já houvesse sido criada com natureza caída, a regeneração espiritual pelo evangelho ao estado livre da humanidade criada não faria sentido.
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