domingo, 7 de abril de 2013

Gênesis e a introdução à Bíblia 4 – A queda e a promessa



Para terminar essa série, vamos analisar o relato da queda, o que isso significou para a criação e para a posteridade, e como essa queda seria solucionada. Eu saltei o importante trecho em que Deus ordena a Adão para que ele trabalhe no jardim. Esse é um tema importante, mas, sinceramente, eu não me julgo competente para comentar sobre ele. Na minha carnalidade, ainda tenho uma visão negativa sobre o trabalho. Por isso, vou direto à queda, isto é, ao momento catastrófico em que a aliança de Deus com a humanidade foi rompida, mas não a sua graça.

Dentre todas as árvores do jardim, duas se destacavam: a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. A árvore da vida, conforme é demonstrado posteriormente, dava ao homem vida enquanto do seu fruto ele comesse. Já a outra árvore dava fruto que, se provado, causaria a morte. Ainda em preparação para o relato da queda, o texto diz que o homem e a mulher não sentiam vergonha de sua nudez. Não havia por que esconder nada, não havia motivo para bloquear a transparência. Sem pecado, a humanidade não sentiria necessidade de criar nada que representasse uma persona, pois nada haveria de vergonhoso para ser ocultado.

Surge então a misteriosa serpente. Como compreendê-la?­ É óbvio que Satanás está atuando por ela, pois ele é sempre o tentador da humanidade no resto da Bíblia. Seria a serpente o animal comum que conhecemos? Neste ponto, eu tomarei um rumo mais heterodoxo. Não penso que era uma serpente literal e física, não entendo por que todas as serpentes do mundo seriam castigadas devido ao erro de uma serpente ancestral. Não se pode aplicar uma analogia do castigo à descendência da humanidade, pois, na realidade, todo homem depois de Adão é praticante do pecado e merecedor do castigo; o mesmo não ocorre às serpentes. Devido à poesia do texto hebraico, acredito que a serpente seja um ente imaginário, uma extensão personalizada das pulsões humanas. Afinal, o humano foi criado sem pecado, mas já com tendência à transgressão, com um impulso para a rebelião. Do contrário, não teriam se deixado seduzir. O termo para “serpente” no hebraico é escrito de forma muito semelhante à palavra “desejo”, como se houvesse um jogo de palavras. O diálogo de Eva é feito com ela mesma, e é uma descrição fascinante de como o humano resolve e satisfaz internamente o seu senso de justiça e o seu mau desejo simultaneamente – como o conflito entre um id e um superego é solucionado. Não é dessa forma que nós também nos convencemos a desobedecer a Deus? Não é assim que também caímos nas doces e venenosas sugestões do diabo para seguir os seus planos?*

Talvez a noção pressuposta de que o homem e a mulher eram ingênuos antes da queda atrapalhe o entendimento acima descrito. Costumamos pensar neles como seres de mente infantil e boba, porque eles não tinham o conhecimento do bem e do mal. Mas o termo “conhecimento” precisa ser devidamente compreendido. Não é que os humanos eram mentalmente amorais. Afinal, se eles sabiam que não deveriam comer da árvore para não morrerem, no mínimo, eles sabiam que desobedecer a Deus nesse sentido era um mal. Eles tinham o conhecimento teórico de bem e mal; o que não tinham era a experiência. Eles não haviam ainda experimentado o mal e suas consequências. No entanto, a mente humana, desde o princípio, preferiu voluntariamente o caminho de Satanás ao caminho de Deus.

E como Eva enganou-se? Em primeiro lugar, a serpente sugestiona um exagero absurdo na ordem de Deus: ele proibiu todos os frutos do jardim. Essa frase representa o ódio generalizado contra a lei divina e seu caráter percebido como grandemente cerceador, intromissivo e desproporcional. Eva, em sua razoabilidade, responde ao seu “id” que, na verdade, Deus só proibiu o fruto da árvore do conhecimento, mas acrescentando uma sutileza: que Deus proibiu tocar no fruto. Deus nunca disse que era proibido tocar, mas apenas que era proibido comer. Eva, mesmo contrariando a sugestão da serpente, já se mostra por ela enganada em um aspecto quase imperceptível sobre a ordem moral. Isto é, ao mesmo tempo em que Eva rejeita a sugestão da serpente, acaba revelando-se já influenciada, distorcendo apenas no detalhe o comando divino. O senso moral combate o impulso, mas não sai incólume desse conflito.

A contrapartida da serpente é contestar o espírito da ordem moral ressignificando-a. Isto é, a serpente não disse uma mentira completa, como da primeira vez. Ela adaptou a ordem de Deus aos interesses da Eva. E, ainda, instigou-a a duvidar do caráter de Deus, insinuando que Deus estava com temor de que Eva se tornasse como ele. Veja que, na literalidade, tudo o que a serpente disse é verdade. Eva realmente não morreu fisicamente quando provou do fruto e realmente se tornou conhecedora como Deus, como Deus mesmo diz no versículo 22. Mas a maldade por trás da desobediência mostrou-se presente. O senso moral de Eva ficou satisfeito com o argumento do mau impulso. O desejo de sentir-se divino dominou a vontade do ser humano, e a sua incredulidade quanto aos preceitos de Deus teve o seu início. É notável que o domínio do pecado sobre o homem consiste na sua ausência de fé em Deus, na sua rejeição do que ele diz e no prazer em se tornar um deus. Essa é a idolatria a si mesmo que todo homem tem. Fraquejado pelo impulso maligno, o senso de justiça cede, sofre uma reprogramação e relativiza a moral divina para benefício próprio.

É importante notar também que a tentação ao pecado é extremamente prazerosa. Quando imaginamos o diabo, pensamos em alguém horrendo, mas não é assim que ele se apresenta. Em nossa segurança, imaginamos a prática do pecado com grande desgosto e amargura, mas, quando o momento realmente vem, o prazer carnal é vívido. Eva percebeu que o fruto era belo, que parecia delicioso. E ainda foi seduzida pelo fim dele, que é dar conhecimento sobre bem e mal. A tentação carnal é real e não deve ser subestimada. Eva comeu do fruto, ignorando a orientação de Deus e tudo de bom sobre a sua sabedoria que ele já havia confirmado, e levou ao marido pra ele também comer. Instigado pela mulher, o que o homem não faz? Facilmente Adão foi seduzido e transgrediu. Nesse momento, tanto Adão como Eva representam toda a humanidade posterior. A figura de Adão é mais enfatizada no Novo Testamento. Romanos 5 diz que Adão foi o início do reino da morte, pois em Adão todos pecaram e morreram. Mas Cristo, o perfeito o homem, a plena imagem de Deus e o supremo marido cumpriu todo o propósito no qual Adão falhara. Jesus, pelo seu ato sacrificial, imputou a todos justiça e vida, tal qual Adão havia imputado morte pelo seu ato pecaminoso.

O que se segue é uma total catástrofe. Para começar, o casal percebe sua nudez e se envergonha. O senso de imoralidade domina a alma e cria a necessidade da persona. O homem nunca mais revelaria quem ele é, pois o pecado traz o medo da transparência e a segurança na mentira. Em seguida, o casal se esconde de Deus. Tamanha ingratidão a do homem primitivo e a nossa! Desde esse dia, também buscamos inutilmente nos esquivar de Deus, fechando os ouvidos para a sua palavra e criando nossa ilusionaria zona de estabilidade centrada em nós mesmos. Deus, porém, questiona o homem sobre o que ele fez. O marido, corrompido e ímpio, agora manchado pelo pecado, coloca a culpa na mulher e também em Deus – “a mulher que tu me deste”. Aquele que foi designado para proteger e zelar pela mulher tentou jogar para ela a responsabilidade. Preferiu que ela sofresse, quando deveria dizer “Senhor, castigue-me em lugar dela” – que foi justamente a atitude de Jesus em sofrer a ira no lugar de sua noiva. E Adão ainda se ira com Deus, como se o culpado fosse Deus de colocar a mulher para induzi-lo ao erro. Como diz o Provérbios 19:3, “É a insensatez do homem que arruína sua vida, mas o seu coração se ira contra o Senhor”. Que maldade, que terror, especialmente porque nós repetimos a mesma história. Eva simplesmente repete o mesmo raciocínio e culpa a serpente, como se fosse algo externo a ela que fosse responsável pelo pecado, e não ela mesma. Ainda hoje, as mulheres sofrem esse conflito entre a sua vontade moral e a vontade de seus instintos. Os homens também, claro, mas é mais explícito no caso das mulheres.

Deus dá o castigo a cada parte como cabe. Por causa do homem, Deus amaldiçoou toda a criação. O pecado teve consequências globais. Por isso, Romanos 8 diz que a criação aguarda ansiosamente pelo dia da redenção. Também, diz Colossenses, Deus reconcilia em Cristo todas as coisas, inclusive as que estão no céu. Pois todo o universo foi afetado pela queda do homem. E o homem sofre porque a criação não mais coopera com o seu domínio. O castigo da mulher é também facilmente visível: a sua sujeição ao marido tornou-se uma escravidão, uma opressão, como a história tem atestado sempre. A mulher deixou de ser vista como amiga para tornar-se posse. Em Cristo, porém, “não há judeu ou grego, homem ou mulher, escravo ou livre”. Jesus, sendo o perfeito marido, resgatou a mulher para a sua condição de amiga auxiliadora. Nele, as mulheres se libertam da maldição da queda.

A maldição comum ao homem e à mulher é a separação da árvore da vida. Deus, vendo que o homem tornou-se conhecedor do bem e do mal como ele, não mais permitiu que ele vivesse para sempre. A punição de Deus foi, realmente, a morte, conforme ele havia alertado. O homem pecador e experimentador do mal não mais viverá para sempre. Agora, você já reparou o que nós vemos no Apocalipse? Olhe o 22:2, a árvore da vida sendo devolvida aos salvos. Pela salvação do Cordeiro, que sofreu a maldição do Gênesis por nós, que voluntariamente afastou-se da árvore da vida para oferecer-se em sacrifício, temos novamente acesso à vida eterna.

Mas a maldição mais significativa está no castigo da serpente. Deus condenou a serpente a rastejar, de forma que morda o calcanhar do descendente da mulher e seja por ele esmagada na cabeça. Essa figura é real para a literalidade de um humano lutando com uma cobra, mas lembre-se do que essas coisas significam aqui. A serpente, simbolizando o pecado e, por detrás, a atuação do diabo, morderia o descendente da mulher. Isso ocorreu quando o Senhor Jesus, descendente de Eva segundo a carne, foi assassinado por uma multidão de filhos do diabo. Entretanto, nesse mesmo momento, Jesus esmagou Satanás e o pecado. Hebreus 2:14 diz que Jesus derrotou o diabo, que tinha o poder da morte, e Colossenses 2:15 diz que Jesus trinfou sobre os poderes e autoridades na cruz, isto é, o legalismo que dava pulsão ao pecado. Desde Gênesis 3:15, sabemos que viria aquele para triunfar sobre a serpente após ser por ela ferido, para que o paraíso seja restaurado, para que o acesso à árvore da vida seja novamente dado a nós pela graça de Deus.

Para encerrar, uma última consideração. Existe sempre a pergunta do porquê Deus colocou a maldita árvore se ele sabia que o homem pecaria. A resposta mais comum é que Deus queria que o homem lhe servisse por sinceridade e vontade própria, tendo a possibilidade de escolher não fazê-lo, pois Deus não queria adoradores mecânicos. Minha opinião vai para outro rumo. Em primeiro lugar, porque a Escritura deixa claro que o homem é tendente ao mal desde sempre, e não havia possibilidade alguma da queda não ter acontecido. Segundo, porque, filosoficamente, não é necessário fazer separação entre a sinceridade e a obrigatoriedade. Se o homem fosse obrigado a adorar a Deus, seria uma adoração perfeitamente autêntica, e não há por que duvidar disso. Afinal, a adoração que prestaremos na eternidade será totalmente obrigatória, não haverá mais como cair de novo, e nem por isso ela deixará de ser genuína. Meu pensamento é que Deus colocou ao homem a fatalidade da queda para construir a relação de graça posteriormente. Através da queda, Deus revelou a si mesmo e atraiu glória para si mesmo. Em certo sentido, nós conhecemos Deus melhor do que Adão jamais conheceu. O Adão antes da queda não tinha pecado. Como ele poderia conhecer a misericórdia e a graça de Deus? Como ele poderia conhecer a sua soberania sobre o mal? Não estamos acostumados a pensar assim. Mas a realidade é que Deus, através do seu resgate por nós, do seu triunfo sobre o nosso pecado, revela-se a nós e recebe glória de forma que não seria possível se o mundo fosse sempre um paraíso. Deus é soberano sobre a história e se faz conhecido por todo o mundo em todo o tempo. A ele é devida toda a gratidão e a adoração.

André Duarte

*Após a publicação deste post, fui convencido por um caro irmão de que minha opinião que eu reconheci como heterodoxa estava errada. Preferi seguir uma interpretação mais judaica da "metáfora" da serpente e não percebi que ela não era coerente com princípios cristãos relativos à queda da natureza humana e de sua regeneração pelo evangelho. Hoje, vejo que a serpente era, realmente, um ente externo movido por Satanás, e não uma projeção da natureza humana corrompida de Eva; se ela já houvesse sido criada com natureza caída, a regeneração espiritual pelo evangelho ao estado livre da humanidade criada não faria sentido. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário