domingo, 14 de abril de 2013

Lei, tradição e verdadeira espiritualidade



            

            Do que consiste a vida cristã? Um conjunto de regras? Sentimentos corretos? Um relativismo em que o que importa é a intenção? Ora, é evidente que ser seguidor de Jesus envolve obediência. Mas obediência a quê, exatamente? A obediência ao evangelho precisa ser bem compreendida com relação aos seus pressupostos, sua finalidade, seus objetos. Todos os crentes sérios concordam que o pecado é algo ruim, presente em pensamentos, palavras e atos, que deve ser evitado. No entanto, quando se pergunta a um crente exatamente quais coisas são pecados, é difícil receber uma resposta completa. Na verdade, em certo sentido, essa será uma pergunta eterna. Todos nós temos dúvidas sobre quais práticas são pecaminosas, quais são os limites do pecado. Mas existem várias doutrinas gerais na Bíblia sobre a maneira de se lidar com o pecado, e elas ajudarão muito no discernimento. Para esse estudo, quero colocar uma delas a partir dos textos nos evangelhos sinóticos – a briga de Jesus com a tradição dos anciãos – com um paralelo em Colossenses 2. Basicamente, o que esses relatos ensinam é que tanto o pecado quanto a obediência encontram-se no espírito do homem e se manifestam em frutos, e não que eles vêm de fora para dentro.

            O texto é bem conhecido. Jesus é confrontado pelos fariseus porque os discípulos não lavavam as mãos antes de comer. Esse lavar de mãos não era higiênico, era apenas cerimonial. De acordo com algumas proposições do Talmud, o homem que não lavava as mãos antes da refeição era como um assassino. Essa ordem é parte da tradição dos anciãos, não dos mandamentos de Deus. E Jesus confronta esses religiosos justamente no amor que eles tinham por suas tradições, a ponto de elevá-las a uma normatividade maior do que a própria Lei de Deus. Jesus cita o profeta Isaías, dizendo “Em vão me adoram; seus mandamentos não passam de regras ensinadas por homens”. Aqui, Jesus combate a hipocrisia de pessoas que querem legislar por conta própria, enquanto ignoram as ordens divinas. Para ilustrar, pense no seguinte exemplo: o crente que diz que ir à boate é pecado (absolutamente), mas, na hora de dar carona aos amigos, não se importa de esconder um deles no porta-malas ou de colocar mais de três pessoas no banco de trás. O que ele está fazendo? Simplesmente se justificando com base em uma regra inventada por homens – pois Deus nunca disse que era pecado ir à boate – e pecando em desobedecer a uma ordem sensata do Estado, o qual é colocado por Deus para reger os atos civis.

            Jesus ensina aqui um limite para o que se pode definir como pecado. Pecado é sempre definido pelas Escrituras, nunca por invenções humanas. Tradição dos anciãos não é só problema dos judeus, mas também da Igreja. Católicos romanos e ortodoxos abertamente nivelam Bíblia com tradição da Igreja, quando não elevam a tradição para acima. Protestantes tradicionais bem sabem da “sola scriptura”, mas frequentemente caem no erro de elevar a opinião dos reformadores e da história de suas igrejas ao mesmo patamar que a Bíblia, como se fossem todos igualmente inerrantes e inspirados. E pentecostais, que apenas começaram uma tradição e uma história, costumam cair no erro de sacralizar líderes e grandes figuras clericais – o famoso argumento do “ungido do Senhor” – de forma a crer neles cegamente. Especialmente se um pastor inicia o seu sermão dizendo que “Deus colocou isso no meu coração”, é difícil ter a coragem de pensar que, talvez, ele esteja dizendo algo errado e vindo apenas de si mesmo. Nenhum ser humano é inspirado divinamente como autoridade sobre fé e prática. Todos devem estar sujeitos às Escrituras. Tradição dos anciãos não pode definir pecado. Mesmo o mais sábio pastor, o mais brilhante teólogo da história, está sujeito à possibilidade de errar.

          Entenda que isso é algo muito sério. Atribuir a si mesmo ou à tradição de nossa preferência autoridade divina e canonicidade é um produto do orgulho humano. Veja como os fariseus se orgulhavam de suas tradições, da sensação de que, por elas, eles se tornavam mais puros. É um orgulho por definição, pois somente Deus tem a competência para legislar sobre pecado e santidade. Se a sua fé está nas definições de outro que não Deus, você está chamando esse outro de deus. Indo mais longe, a legislação humana sobre pecado tem raízes na rebelião e no ódio contra os padrões de Deus. A corrupção humana é avessa às leis de Deus, o que Paulo mostra claramente em Romanos 7. O homem que se apoiar em justiça própria, mesmo que se considere cristão, vai inventar regras para definir o que é pecado, o que é santidade, o que é piedade. Dessa forma, ele contornará as leis de Deus e conseguirá submeter-se a um ente de sua imaginação, crendo nisso como seu salvador e prescindindo de Jesus. É disso que consiste a distorção da falsa religião no cristianismo.

      Além disso, veja a essência das regras humanas: elementos externos. Regras humanas têm a característica de partir do exterior para o interior. No caso dos fariseus, eles pensavam que o alimento que entra no homem sobre o qual mãos não lavadas tocaram tornaria o homem impuro. É inerente ao ser humano também pensar que o problema tem origem no ambiente, e é o ambiente que corrompe o coração. Mas Jesus ensina algo único aqui. Ele diz que inerente ao homem é a impureza. É a sua maldade inata que transborda em atos externos. O homem não é levado a pecar por aquilo que ele come, ou pelo lugar onde ele está, ou pelas pessoas ao seu redor – embora esses elementos tenham sua importância. Em última instância, o homem peca porque isso é de sua natureza. E não há regra alguma que possa mudar isso. Ora, é tão risível que homens religiosos ainda tentem moldar o caráter de seus liderados por meio de regras inventadas. Se nem mesmo a Lei de Deus foi eficaz para transformar o coração humano, que chance leis humanas têm? A lei, seja ela a de Deus ou a da consciência, tem papel condenatório, nunca santificador.

          Veja o mesmo problema em Colossenses 2. Fico pensando, o que será que legalistas pensam quando leem esse texto? Que isso só pode ser com os outros, nunca com eles? Por que será que nunca ouvi uma pregação sobre isso? Penso que é um dos textos mais esquecidos da história. Não me refiro ao capítulo todo, claro, mas aos versículos 20 a 23, em especial: “Já que vocês morreram com Cristo para os princípios elementares deste mundo, por que, como se ainda pertencessem a ele, vocês se submetem a regras: Não toque, não manuseie, não prove? Todas essas coisas estão destinadas a perecer pelo uso, pois se baseiam em mandamentos e ensinos humanos. Essas regras têm, de fato, aparência de sabedoria, com sua pretensa religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo, mas não têm valor algum para refrear os impulsos da carne”. Cada termo sintático é maravilhoso e confrontador. Regras não mudam o espírito. Ninguém consegue combater seus maus desejos por meio da observância de regras exteriores. Não é o tempo, não é o lugar, não são as pessoas, não são os objetos – nada disso é a causa para o seu pecado e nem o poder para detê-lo.

         Mas não é assim que a cristandade parece funcionar. Somos bombardeados com tradição dos anciãos, interpretações fixas e indiscutíveis sobre a Bíblia, adição de ordenanças sem fundamento escriturístico, dizendo-nos que é assim que não pecamos. É a música laica que entra em nossos ouvidos e nos faz pecar, sendo a solução apartar-se disso. É a boate que incita desejos sexuais, logo, o mandamento é não ir à boate. Os namoros precisam de uma rotina e uma observância de regras convencionais porque é isso que atribuirá santidade e que impedirá o pecado. Assim, a religião cristã torna-se idêntica a qualquer outra religião, com seus ascetismos, suas esquivas de contatos com coisas definidas como mundanas demais e sua confiança em invenções humanas. Mas a fé cristã compreende o pecado da maneira como Jesus ensina – que ele está inato ao homem, que ele parte do interior para o exterior, e que ele não pode ser refreado por regras. Qual é, então a solução? Quem não compreende a crítica ao legalismo costuma temer o antinomismo, a ideia de que, posto tudo isso, um crente pode fazer o que quiser e agir como bem entender. O evangelho, porém, é outro caminho.

            Colossenses 3 mostrará o caminho. Se a observância de regras ascéticas é ineficaz contra o impulso pecaminoso, o que é eficaz? Esse texto fala da ressurreição em Cristo para uma nova vida. Ele diz “pensem nas coisas do alto”. O que isso significa? Que a solução não está na criatividade para regras circunstanciais, e sim em tudo aquilo que Cristo realizou por nós. Ele veio como homem, viveu perfeitamente sob todas as regras e morreu em nosso lugar. Ele saldou nossa dívida com Deus e transferiu a nós a sua justiça. E ele ressuscitou para nos dar a esperança de uma renovação interior e de uma glorificação no fim. Manter a mente nessas coisas, nas bênçãos espirituais de Cristo, isso sim é um golpe nos impulsos pecaminosos. O evangelho é o poder de Deus. Sabendo que somos pecadores amados pelo rei, compreendemos que não há nada além dele de que precisamos para nos mantermos justos. Recebemos a paz para servi-lo por gratidão, não mais por medo ou orgulho. Somos verdadeiramente libertos do domínio do pecado quando abraçamos em profunda humildade o perdão do Senhor. Meditar no evangelho, em tudo o que Jesus significa, em tudo o que ele é, suas implicações para a vida, isso resulta em rejeição do pecado, em não mais achá-lo tão atraente quanto antes.

      E o texto prossegue dizendo “portanto, façam morrer em vocês essas coisas”. Paulo fala da regeneração, do nascer de novo. Ele fala da nossa morte da vida passada com Cristo e de nossa nova vida em sua ressurreição, como homens transformados. O resultado dessa união com Cristo, feita mediante a fé, é que o pecado é mortificado no interior. A obra de Jesus é o que atinge o pecado no espírito humano, o que nenhuma regra jamais poderia fazer. Assim como o pecado está no interior e se expande para fora, também é necessário que a purificação mate o pecado na raiz, no coração do homem. Hebreus 9 mostra que o sacrifício de Cristo é totalmente eficaz, único, definitivo e suficiente para não apenas perdoar pecados, mas para realizar verdadeira purificação interior. É o evangelho que conduz à obediência, não é a obediência que força um apego ao evangelho. Por essa razão, Paulo resume a mensagem proclamada em Romanos no termo “obediência que vem pela fé”. A obediência conforme as pretensões das regras humanas não vem pela fé, e sim pela idolatria. Nem deve a fé ser pensada como um credo proclamado sem poder. Mas a obediência que vem pela fé é a característica de um verdadeiro adorador. Alguém que obedece a Deus por amor e gratidão, por saber quem ele é, por descansar em suas promessas e em seus atos. Que observa as regras de Deus, deixando as de homens como secundárias, por saber que Deus é o verdadeiro Senhor e Salvador, e que só ele é digno de toda a confiança e devoção.

            André Duarte

           

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