Do que consiste a
vida cristã? Um conjunto de regras? Sentimentos corretos? Um relativismo em que
o que importa é a intenção? Ora, é evidente que ser seguidor de Jesus envolve
obediência. Mas obediência a quê, exatamente? A obediência ao evangelho precisa
ser bem compreendida com relação aos seus pressupostos, sua finalidade, seus
objetos. Todos os crentes sérios concordam que o pecado é algo ruim, presente
em pensamentos, palavras e atos, que deve ser evitado. No entanto, quando se
pergunta a um crente exatamente quais coisas são pecados, é difícil receber uma
resposta completa. Na verdade, em certo sentido, essa será uma pergunta eterna.
Todos nós temos dúvidas sobre quais práticas são pecaminosas, quais são os
limites do pecado. Mas existem várias doutrinas gerais na Bíblia sobre a
maneira de se lidar com o pecado, e elas ajudarão muito no discernimento. Para
esse estudo, quero colocar uma delas a partir dos textos nos evangelhos
sinóticos – a briga de Jesus com a tradição dos anciãos – com um paralelo em
Colossenses 2. Basicamente, o que esses relatos ensinam é que tanto o pecado
quanto a obediência encontram-se no espírito do homem e se manifestam em frutos,
e não que eles vêm de fora para dentro.
O texto é bem conhecido. Jesus é confrontado pelos
fariseus porque os discípulos não lavavam as mãos antes de comer. Esse lavar de
mãos não era higiênico, era apenas cerimonial. De acordo com algumas
proposições do Talmud, o homem que não lavava as mãos antes da refeição era
como um assassino. Essa ordem é parte da tradição dos anciãos, não dos
mandamentos de Deus. E Jesus confronta esses religiosos justamente no amor que
eles tinham por suas tradições, a ponto de elevá-las a uma normatividade maior
do que a própria Lei de Deus. Jesus cita o profeta Isaías, dizendo “Em vão me
adoram; seus mandamentos não passam de regras ensinadas por homens”. Aqui,
Jesus combate a hipocrisia de pessoas que querem legislar por conta própria,
enquanto ignoram as ordens divinas. Para ilustrar, pense no seguinte exemplo: o
crente que diz que ir à boate é pecado (absolutamente), mas, na hora de dar
carona aos amigos, não se importa de esconder um deles no porta-malas ou de
colocar mais de três pessoas no banco de trás. O que ele está fazendo?
Simplesmente se justificando com base em uma regra inventada por homens – pois Deus
nunca disse que era pecado ir à boate – e pecando em desobedecer a uma ordem
sensata do Estado, o qual é colocado por Deus para reger os atos civis.
Jesus ensina aqui um limite para o que se pode definir
como pecado. Pecado é sempre definido pelas Escrituras, nunca por invenções
humanas. Tradição dos anciãos não é só problema dos judeus, mas também da
Igreja. Católicos romanos e ortodoxos abertamente nivelam Bíblia com tradição
da Igreja, quando não elevam a tradição para acima. Protestantes tradicionais
bem sabem da “sola scriptura”, mas frequentemente caem no erro de elevar a
opinião dos reformadores e da história de suas igrejas ao mesmo patamar que a
Bíblia, como se fossem todos igualmente inerrantes e inspirados. E
pentecostais, que apenas começaram uma tradição e uma história, costumam cair
no erro de sacralizar líderes e grandes figuras clericais – o famoso argumento
do “ungido do Senhor” – de forma a crer neles cegamente. Especialmente se um
pastor inicia o seu sermão dizendo que “Deus colocou isso no meu coração”, é
difícil ter a coragem de pensar que, talvez, ele esteja dizendo algo errado e
vindo apenas de si mesmo. Nenhum ser humano é inspirado divinamente como
autoridade sobre fé e prática. Todos devem estar sujeitos às Escrituras. Tradição
dos anciãos não pode definir pecado. Mesmo o mais sábio pastor, o mais
brilhante teólogo da história, está sujeito à possibilidade de errar.
Entenda que isso é algo muito sério. Atribuir a si mesmo
ou à tradição de nossa preferência autoridade divina e canonicidade é um
produto do orgulho humano. Veja como os fariseus se orgulhavam de suas
tradições, da sensação de que, por elas, eles se tornavam mais puros. É um
orgulho por definição, pois somente Deus tem a competência para legislar sobre
pecado e santidade. Se a sua fé está nas definições de outro que não Deus, você
está chamando esse outro de deus. Indo mais longe, a legislação humana sobre pecado
tem raízes na rebelião e no ódio contra os padrões de Deus. A corrupção humana
é avessa às leis de Deus, o que Paulo mostra claramente em Romanos 7. O homem
que se apoiar em justiça própria, mesmo que se considere cristão, vai inventar
regras para definir o que é pecado, o que é santidade, o que é piedade. Dessa
forma, ele contornará as leis de Deus e conseguirá submeter-se a um ente de sua
imaginação, crendo nisso como seu salvador e prescindindo de Jesus. É disso que
consiste a distorção da falsa religião no cristianismo.
Além disso, veja a essência das regras humanas: elementos
externos. Regras humanas têm a característica de partir do exterior para o
interior. No caso dos fariseus, eles pensavam que o alimento que entra no homem
sobre o qual mãos não lavadas tocaram tornaria o homem impuro. É inerente ao
ser humano também pensar que o problema tem origem no ambiente, e é o ambiente
que corrompe o coração. Mas Jesus ensina algo único aqui. Ele diz que inerente
ao homem é a impureza. É a sua maldade inata que transborda em atos externos. O
homem não é levado a pecar por aquilo que ele come, ou pelo lugar onde ele
está, ou pelas pessoas ao seu redor – embora esses elementos tenham sua
importância. Em última instância, o homem peca porque isso é de sua natureza. E
não há regra alguma que possa mudar isso. Ora, é tão risível que homens
religiosos ainda tentem moldar o caráter de seus liderados por meio de regras
inventadas. Se nem mesmo a Lei de Deus foi eficaz para transformar o coração
humano, que chance leis humanas têm? A lei, seja ela a de Deus ou a da
consciência, tem papel condenatório, nunca santificador.
Veja o mesmo problema em Colossenses 2. Fico pensando, o
que será que legalistas pensam quando leem esse texto? Que isso só pode ser com
os outros, nunca com eles? Por que será que nunca ouvi uma pregação sobre isso?
Penso que é um dos textos mais esquecidos da história. Não me refiro ao
capítulo todo, claro, mas aos versículos 20 a 23, em especial: “Já que vocês morreram com Cristo para os
princípios elementares deste mundo, por que, como se ainda pertencessem a ele,
vocês se submetem a regras: Não toque, não manuseie, não prove? Todas essas
coisas estão destinadas a perecer pelo uso, pois se baseiam em mandamentos e
ensinos humanos. Essas regras têm, de fato, aparência de sabedoria, com sua
pretensa religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo, mas não têm
valor algum para refrear os impulsos da carne”. Cada termo sintático é
maravilhoso e confrontador. Regras não mudam o espírito. Ninguém consegue
combater seus maus desejos por meio da observância de regras exteriores. Não é
o tempo, não é o lugar, não são as pessoas, não são os objetos – nada disso é a
causa para o seu pecado e nem o poder para detê-lo.
Mas não é assim que a cristandade parece funcionar. Somos
bombardeados com tradição dos anciãos, interpretações fixas e indiscutíveis
sobre a Bíblia, adição de ordenanças sem fundamento escriturístico, dizendo-nos
que é assim que não pecamos. É a música laica que entra em nossos ouvidos e nos
faz pecar, sendo a solução apartar-se disso. É a boate que incita desejos
sexuais, logo, o mandamento é não ir à boate. Os namoros precisam de uma rotina
e uma observância de regras convencionais porque é isso que atribuirá santidade
e que impedirá o pecado. Assim, a religião cristã torna-se idêntica a qualquer
outra religião, com seus ascetismos, suas esquivas de contatos com coisas definidas
como mundanas demais e sua confiança em invenções humanas. Mas a fé cristã
compreende o pecado da maneira como Jesus ensina – que ele está inato ao homem,
que ele parte do interior para o exterior, e que ele não pode ser refreado por
regras. Qual é, então a solução? Quem não compreende a crítica ao legalismo
costuma temer o antinomismo, a ideia de que, posto tudo isso, um crente pode
fazer o que quiser e agir como bem entender. O evangelho, porém, é outro
caminho.
Colossenses 3 mostrará o caminho. Se a observância de
regras ascéticas é ineficaz contra o
impulso pecaminoso, o que é eficaz? Esse texto fala da ressurreição em Cristo
para uma nova vida. Ele diz “pensem nas coisas do alto”. O que isso significa?
Que a solução não está na criatividade para regras circunstanciais, e sim em
tudo aquilo que Cristo realizou por nós. Ele veio como homem, viveu
perfeitamente sob todas as regras e morreu em nosso lugar. Ele saldou nossa
dívida com Deus e transferiu a nós a sua justiça. E ele ressuscitou para nos
dar a esperança de uma renovação interior e de uma glorificação no fim. Manter
a mente nessas coisas, nas bênçãos espirituais de Cristo, isso sim é um golpe
nos impulsos pecaminosos. O evangelho é o poder de Deus. Sabendo que somos
pecadores amados pelo rei, compreendemos que não há nada além dele de que precisamos
para nos mantermos justos. Recebemos a paz para servi-lo por gratidão, não mais
por medo ou orgulho. Somos verdadeiramente libertos do domínio do pecado quando
abraçamos em profunda humildade o perdão do Senhor. Meditar no evangelho, em
tudo o que Jesus significa, em tudo o que ele é, suas implicações para a vida,
isso resulta em rejeição do pecado, em não mais achá-lo tão atraente quanto
antes.
E o texto prossegue dizendo “portanto, façam morrer em
vocês essas coisas”. Paulo fala da regeneração, do nascer de novo. Ele fala da
nossa morte da vida passada com Cristo e de nossa nova vida em sua
ressurreição, como homens transformados. O resultado dessa união com Cristo,
feita mediante a fé, é que o pecado é mortificado no interior. A obra de Jesus
é o que atinge o pecado no espírito humano, o que nenhuma regra jamais poderia
fazer. Assim como o pecado está no interior e se expande para fora, também é
necessário que a purificação mate o pecado na raiz, no coração do homem.
Hebreus 9 mostra que o sacrifício de Cristo é totalmente eficaz, único,
definitivo e suficiente para não apenas perdoar pecados, mas para realizar
verdadeira purificação interior. É o evangelho que conduz à obediência, não é a
obediência que força um apego ao evangelho. Por essa razão, Paulo resume a
mensagem proclamada em Romanos no termo “obediência que vem pela fé”. A obediência
conforme as pretensões das regras humanas não vem pela fé, e sim pela
idolatria. Nem deve a fé ser pensada como um credo proclamado sem poder. Mas a
obediência que vem pela fé é a característica de um verdadeiro adorador. Alguém
que obedece a Deus por amor e gratidão, por saber quem ele é, por descansar em
suas promessas e em seus atos. Que observa as regras de Deus, deixando as de
homens como secundárias, por saber que Deus é o verdadeiro Senhor e Salvador, e
que só ele é digno de toda a confiança e devoção.
André Duarte
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