Temos discutido (e brincado) ultimamente sobre os 5
pontos do calvinismo. Eles são, quando corretamente compreendidos, coesos entre
si e interdependentes. Mas, para a maioria das pessoas, as doutrinas vêm à
mente de maneira esparsa, como moléculas soltas movendo-se na abstração. Por
isso, eu compreendo tranquilamente quem crê no livrearbítrio, quem não engole a
Expiação Limitada ou a Irresistível Graça. Mas a descrença na Perseverança dos
Santos é inaceitável e inegociável, e eu explicarei o porquê. Basicamente, a
crença em que a salvação pode ser perdida leva inevitavelmente, em suas últimas
consequências, à autojustificação, salvação por obras e negação de Jesus como
real Salvador. Antes de se ofender, peço que preste atenção, reflita sobre suas
opiniões e entenda que mesmo o menor artigo de fé deve ser harmonizado com o
fundamento da fé.
Não há, biblicamente, razão alguma para se crer na
possibilidade de perder a salvação. O argumento primário de quem crê nessa
heresia é filosófico, não escriturístico. A ideia é apresentada como uma
retórica mais ou menos assim: “Ora, se a salvação não pode ser perdida, então
quer dizer que você pode só ser salvo, sair fazendo o que quiser e ir pro céu
mesmo assim?”. Essa frase revela uma grave e perigosa falta de compreensão do
que significa salvação. O que é salvação, de acordo com essa ideia? Significa
simplesmente confessar a fé em Jesus e então receber um decreto divino de que
você irá para o céu, e não para o inferno. E mais nada. A salvação torna-se
relevante apenas para o destino na pós vida e descartável para a vida presente.
É uma salvação que só se realiza no futuro; no presente, é apenas uma palavra
que confere um status de “salvo”. Porém, a Bíblia ensina que a salvação é um
ato de graça de Deus real por todo o tempo. Como bem aponta Russel Shedd, a
salvação é uma realidade do presente, do passado e do futuro. Nós já fomos
salvos quando cremos em Jesus, estamos sendo salvos da pecaminosidade e rumo à
santificação, e seremos salvos de todo o mal e da morte quando entrarmos na
vida eterna. A salvação não pode ser interrompida por um ato nosso. Do
contrário, nossas decisões teriam um poder maior do que o do sacrifício de
Jesus.
Entenda que a Perseverança dos Santos depende do novo
nascimento. O que é nascer de novo, para quem crê que pode perder a salvação?
Nada mais do que uma abstração, uma espécie de resolução pessoal em mudar de
vida que pode ser revogada a qualquer tempo. Mas o que a Bíblia ensina é que o
nascer de novo é um ato de Deus, e não do homem. E o que Deus faz, nenhum homem
pode desfazer. Nascer de novo é morrer para a carne e ressuscitar para o
Espírito. E que é o sacrifício de Jesus, a sua cruz, que tem o poder de efetuar
esse renascimento. Veja Hebreus 9, veja como o poder da morte de Cristo tem
verdadeiro poder para realizar santificação. Se você acha que pode simplesmente
resolver obedecer a Deus e que isso significa ser regenerado, então você não
precisa de Jesus. Já pode se salvar pelo próprio esforço. Sua salvação depende
de você, do que você faz. Você pode afirmar que, quando você creu e quando
Jesus morreu, isso foi um ato de graça de Deus, mas a manutenção dessa salvação
é competência sua. O que é isso, a não ser se autoproclamar como o seu próprio
salvador? Para quê você precisa da graça de Deus, se a sua salvação depende da
sua mais recente performance de “boas obras”? Não, é competência de Deus manter
você salvo, e não sua. Isso é uma promessa dele – essa é a promessa que vem com
o Espírito Santo. Salvação não é um status ou um mero registro num livro
celestial, mas é uma verdade, uma realidade palpável na vida atestável pelos
frutos.
Falando nisso, é facilmente perceptível que a razão por
que muita gente não engole a Perseverança dos Santos é o medo de que essa
doutrina leve ao descaso com a ética divina. Esse medo, como já foi visto,
provém da compreensão deficiente do que significa salvação. Um salvo não é
negligente com a ética divina. O seu bom fruto só é possível porque Deus fez de
você uma boa árvore. Se um professo crente dá maus frutos, ele não é boa
árvore. Não foi salvo, não foi regenerado, não nasceu de novo. A salvação é uma
transformação, não só um pensamento na sua mente. E veja que, se você acha que
deve obedecer a Deus para não perder a salvação, sua motivação é o medo, e não
o amor. Devolvendo a pergunta: se a salvação pode ser perdida, então quer dizer
que um salvo obedece a Deus pelo medo de ir pro inferno? Que graça é essa?
Obedecer a Deus pelo medo é característica da Antiga Aliança. Veja como Hebreus
12 descreve a cena do Sinai: Deus se manifestou com voz trovejante, tremendo o
monte e fazendo-o pegar fogo e exalar densa fumaça. Deus diz a Moisés “Riscarei
do meu livro todo aquele que pecar contra mim”. Ezequiel 18 nos ensina que “todo
aquele que pecar morrerá”. Isaías 8:13 nos diz que devemos ter pavor do Senhor.
Mas, ainda conforme Hebreus 12, esse não é o nosso pacto. A aliança baseada no
sacrifício de Cristo é a aliança da graça. A graça de Deus desvia a ira de Deus
de nós para Jesus. E o sangue do Cordeiro é puro e eficaz para nos perdoar de
toda transgressão. 1João diz que, se alguém tem medo de Deus, não está
aperfeiçoado no amor. Pois a nossa obediência a Deus é derivada do nosso novo
espírito que foi cativado pelo amor de Deus, o Pai (quem foi do Estranho leu
isso com a melodia). Um legalista obedece a Deus por causa de si mesmo, para o
seu próprio benefício; um salvo pela graça obedece a Deus por amor a Deus, para
se assemelhar a ele, por adorá-lo. Não é salvo quem professa a fé, mas não
obedece a Deus; tampouco quem obedece-lhe apenas por amor próprio.
Nossos eventuais pecados são cobertos pela graça de Deus.
É necessário arrependimento, sim, mas mesmo o arrependimento humano é falho e
necessita da ajuda divina. Mesmo no tempo da Lei, lemos várias vezes a frase “se
alguém pecar, ainda que sem intenção, será culpado. Quando tomar consciência do
seu pecado, oferecerá [insira o sacrifício aqui]”. Essa ideia permanece mesmo
hoje. Quando pecamos, mesmo sem saber, transgredimos o mandamento de Deus. E,
quando percebemos que pecamos, o arrependimento é ordenado. Em vista disso,
veja como é falha a ideia do “Você precisa vigiar o tempo todo porque, se você
pecar e não der tempo de se arrepender, se Jesus voltar ou se você morrer, você
perde a salvação ou o arrebatamento”. O problema é que nós pecamos o tempo
todo. Ser pecador não significa que você às vezes comete um ou outro pecado, e
sim que você, em sua carne, é marcado pelo pecado constantemente. Você não faz
nada além de pecar, a não ser que a graça de Deus o livre disso. Tenha a
certeza de que há muitos pecados dos quais você não se arrependeu porque você
nem sabe que eles estão lá. Como diz Provérbios, “Quem pode dizer ‘estou livre
do meu pecado, estou purificado de coração’?”. O perdão de Deus não vem só se
você estiver consciente de todos os seus pecados o tempo todo e se arrependendo
de todos eles, porque isso é impossível. A melhor oração que descreve a
situação de um crente a respeito desse assunto é a do salmo 19: “Quem pode
discernir os próprios pecados? Perdoa-me dos que desconheço! Guarda-me também
dos pecados intencionais; que eles não me dominem. Então, serei íntegro,
inocente de grande transgressão”. Você não é salvo porque se arrependeu de cada
pecado, mas porque a graça de Deus cancela toda a sua dívida – seus pecados
passados e futuros – e então move a sua alma para o arrependimento. Do
contrário, a sua salvação seria também pela sua boa obra de arrependimento, e
não pela graça.
Vale uma nota para o texto de Hebreus 6. O texto parece
dizer que pessoas salvas podem perder a salvação e então nunca mais recuperá-la.
A parte do “nunca mais recuperá-la” está bem explícita e correta, e esse é o
ensino principal desse texto. Quem abandona a fé totalmente nunca mais será
reconduzido pelo Espírito ao arrependimento e não será mais perdoado. Se o tal
que caiu era salvo mesmo ou apenas um iludido na Igreja, o texto não deixa
claro e não pretende ensinar. Ao meu ver, o texto deliberadamente evita dizer
que a pessoa era salva e descreve o máximo das bênçãos eclesiásticas das quais
uma pessoa pode desfrutar, mesmo sem estar salva. Mesmo quando o Espírito é
mencionado, entendo que a referência é à comunhão proporcionada pelo Espírito,
não à regeneração da alma. Estando esse texto obscuro quanto a esse ponto,
precisamos buscar evidências mais explícitas. Por exemplo, 1João 2. Lá, o
apóstolo diz que os anticristos já estão pelo mundo e saíram “do meio de nós.
Porém, não eram dos nossos; se fossem mesmo dos nossos, teriam permanecido
conosco. O fato de terem saído mostra que não eram dos nossos”. Creio que esse
texto não deixa margem para outra interpretação senão a mais clara.
A
Perseverança dos Santos não ensina que você é salvo e pode fazer o que quiser e
continuar salvo. Ela ensina que Deus jamais deixará você se desviar. Como
perfeito Pai, Deus disciplinará em amor os seus filhos (Hebreus 12). Aquele que
nasceu de novo jamais se desviará do Bom Pastor (João 10:27-29). Não há
absolutamente nada que separará você do amor pactual de Deus sancionado por
Cristo pela dádiva do Espírito (Romanos 8). Jesus não pode perder de si nenhum
dos que Deus lhe der (João 6:39). Ele jamais nos lançará fora. Deus não nos
salvou apenas no momento em que cremos, mas salva-nos constantemente do domínio
do pecado. Se você acha que o perigo de perder a salvação é o único ou melhor estímulo
para uma pessoa ser santa, eu não acho que você tenha entendido a graça de Deus
e a justificação pela fé. Retorne aos seus fundamentos e creia naquele que pode
realmente salvá-lo.
André Duarte
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