Como é a relação entre lei e
graça? Frequentemente, temos um pensamento dispensacionalista de que o Antigo
Testamento era a “época” (ou dispensação) da Lei e o Novo Testamento é a era da
graça. Essa dicotomia pode levar a compreensões erradas a respeito da obra de
Cristo e da maneira como um cristão deve viver. É necessário entender que lei e
graça são aspectos da dádiva de Deus ao homem que sempre existiram juntas. João
1 diz que “a Lei veio por Moisés; a graça e a verdade vieram por meio do
Filho”. Isso faz referência à revelação de Deus, não à efetividade dessas
dádivas. Não é como se, no Antigo Testamento, não houvesse graça. E nem é
verdade que, no Novo, não há normatividade da Lei.
Veja bem: se
você pensar que não havia a graça salvadora de Deus no Antigo Testamento,
concluirá que era possível ao homem ser salvo por obras ou que nenhum homem foi
salvo. Ambas as conclusões estão erradas. Se fosse possível ao homem ser salvo
por obras, toda a obra de Cristo é inútil. E, se nenhum homem houvesse sido
salvo, nenhum sentido existe nas declarações sobre a justiça de Noé, Moisés,
Abraão, Davi, e nem mesmo os profetas de Deus foram salvos, o que é absurdo.
Mas, ao contrário: o Novo Testamento justamente vai fundamentar a salvação pela
graça mediante a fé nas escrituras do Antigo Testamento. Romanos 4, bem como
grande parte do livro de Gálatas, é um argumento de Paulo de que a justificação
pela fé sempre existiu, e que isso é claro na história de Abraão. Abraão creu,
e essa fé foi-lhe atribuída como justiça. E essa justificação ocorreu antes que
Abraão houvesse feito qualquer obra consequente dessa fé – antes da
circuncisão, do sacrifício de Isaque. Romanos 9 (calma!) diz que Deus escolheu
Jacó pela sua graça, e não Esaú, antes que eles houvessem feito qualquer obra.
Hebreus 9 diz que os sacrifícios da Lei nunca puderam perdoar pecados e efetuar
purificação e aperfeiçoamento, mas eram oferecidos como um memorial da
pecaminosidade humana, demonstrando a necessidade de um real salvador. Romanos
4 usa também o exemplo de Davi, que compreendeu a graça de Deus que perdoa o
pecador e remove-lhe a culpa.
Hebreus
11 também mostra que, mesmo que Jesus ainda não houvesse efetuado o seu
sacrifício, aqueles que creram na palavra de graça de Deus foram considerados
fieis. Diz o texto que Moisés abandonou o Egito por amor a Cristo. E 1Coríntios
10 também fala do povo israelita bebendo da rocha espiritual, que era Jesus. Notar
também João 8, em que Jesus se chama de Eu Sou, o mesmo Deus que falou a
Moisés. E que “Abraão viu o meu dia e se alegrou”. Todos os que creram no Deus
santo e gracioso no Antigo Testamento, por definição, creram em Jesus, conforme
a medida da revelação que foi dada a eles. Ora, Davi, que só tinha a Lei de
Moisés, compreendeu que Deus se agrada de um coração contrito, e não de
sacrifícios. Isso fica claro nos salmos. Embora com uma revelação tão parcial
sobre Deus, em comparação com o que temos hoje, ele percebeu que o mesmo Deus
da Lei era um Deus que recebe aqueles que confiam na graça dele e que se voltam
a ele arrependidos do pecado. E ele profetizou, no salmo 110, sobre o seu
Senhor, que seria o seu próprio descendente, o Messias. Davi creu em Cristo e
foi salvo pela graça de Deus, mediante a fé.
A
outra face dessa dualidade é que a Lei vale no Novo Testamento. E, aqui, a
compreensão é complicada. Existem textos que falam sobre a Lei estar acabada,
outros que falam que ela continua. Como entender? É necessário perceber que o
termo “Lei” é escrito com significados diferentes. Em certos contextos, é
referência ao conteúdo da Lei de Moisés; em outros, é a lei de Deus de forma
geral; ainda em outros, é referência ao pacto da Lei. O que foi abolido é o
pacto da Lei, isto é, a maldição da Lei segundo a qual todo o que transgredi-la
morrerá. Esse pacto foi abolido por Cristo para todo o que nele crer; quem nele
não crê permanece condenado pela transgressão. Nesse sentido, Paulo diz que “o
fim da Lei é Cristo”. Também foi abolida a forma externa e antiga da Lei, como
uma escritura imposta à qual os homens devem se conformar por esforço próprio. Paulo
diz a esse respeito que Jesus “anulou a Lei expressa em ordenanças”. Essa forma
foi transformada por outra que não opera de fora para dentro, mas de dentro para
fora do fiel. Conforme a aliança prometida em Jeremias 31, o Espírito escreve
as leis de Deus no coração humano. É a regeneração santificadora que o Espírito
opera a nova forma da Lei de Deus. Paulo diz também que a nova Lei é escrita em
tábuas de corações humanos, não em tábuas de pedra. Muitas pessoas pensam que
há na Lei de Moisés uma divisão entre lei moral e cerimonial, e que Jesus
aboliu a lei cerimonial, mas ratificou a moral. O problema é que não é tão
simples encaixar cada uma das leis em moral ou cerimonial (ex: “Não cozinhe o
cabrito no leite da própria mãe” é moral ou cerimonial?).
Portanto,
a maldição da condenação da Lei é completamente excluída pela obra de Cristo em
nosso favor. A forma da Lei é também redefinida, e todos os sinais que apontavam
para Cristo também são cumpridos nele. Por isso, sacrifícios não são mais
oferecidos, nem há mais templo ou sacerdotes. Porém, Jesus deixa claro que ele
não veio para abolir a Lei, mas para cumpri-la. E diz que é mais fácil céu e
terra passarem do que cair o menor traço da Lei. O que isso significa? O que é
que permanece da Lei? Algumas coisas: primeiro, permanece o seu testemunho. É
por causa da Lei que Jesus realiza sua obra. A própria Lei aponta a necessidade
de um real salvador. A carta aos Hebreus explica isso o tempo todo. Se a Lei
fosse excluída, se deixasse de existir, tudo o que Jesus fez perderia o
sentido. Segundo, a Lei permanece como a descrição do padrão inalcançável de
Deus. A Lei deve existir para provar o merecimento da condenação; do contrário,
a salvação pela graça também careceria de fundamento. Além disso, a Lei
permanece como uma descrição prática do Espírito da vontade de Deus, que é o
amor. Segundo Paulo em Romanos 13, o amor é o cumprimento da Lei. Jesus bem
disse que amar Deus e amar o próximo é o núcleo de toda a Lei. Logo, esta é a
Lei que permanece para os cristãos: o amor. A letra da Lei de Moisés não é mais
normativa para os cristãos (pode cozinhar o cabrito no leite da própria mãe
tranquilamente), mas o espírito de amor que corre por ela é obrigatório. E,
desse espírito, mais plenamente revelado no Novo Testamento do que na Lei,
existem todas as normas divinas ditas por Jesus e pelos apóstolos e o próprio
exemplo da vida de Jesus.
Portanto,
não é verdade que a Lei não é mais necessária para os cristãos. As leis de
Deus, suas normas esclarecidas no Novo Testamento, são totalmente obrigatórias.
Não é legalismo exortar os irmãos a obedecer às leis de Deus. Não é legalismo
repreender os irmãos quando eles transgredirem um mandamento de Deus. Legalismo
é confiar na Lei para a justificação. Também o é acrescentar leis humanas às
leis de Deus. A base da obediência à Lei não é mais uma justificação
consequente, mas a gratidão e o amor ao Deus que já nos justificou por sua
graça. É a fé na salvação de Cristo que leva à obediência. E isso não torna a
obediência à Lei menos obrigatória do que sempre foi. Ao contrário, temos hoje
um estímulo à obediência muito melhor e mais belo do que antes: não o medo da
punição, não o orgulho da autojustificação, mas o amor de Deus em nos resgatar
e iluminar.
Perceba,
então, que sempre houve em toda a história do povo de Deus a Lei e a graça para
efetuar a redenção: a Lei para condenar e a graça para salvar. Se não houvesse
condenação, do que seríamos salvos? Se não houvesse salvação, que lugar os santos
do Antigo Testamento teriam? Que sentido haveria em sermos considerados filhos
de Abraão? Todos os herdeiros da vida eterna, de Abel ao último mártir, foram,
primeiro, condenados pelo seu pecado e salvos pela graça de Deus. Nunca alguém
foi justificado por obras; nunca alguém será salvo sem obras.
André
Duarte
Nenhum comentário:
Postar um comentário