quinta-feira, 7 de novembro de 2013

PRC 1 - Culto público X culto particular


           Se você não está familiarizado com essa sigla, deixe-me esclarecer: trata-se do Princípio Regulador de Culto. Esse termo envolve uma das maiores discussões da Reforma, que dividiu inclusive os próprios reformadores: qual é a regra bíblica para o culto? Como deve ser prestado o culto a Deus?
           
Lutero, apesar de suas tremendas contribuições teológicas, não conseguiu desenvolver o tema com tantos detalhes. Ele tinha certeza de que o culto deveria ter como elemento central o sermão, e não a eucaristia. No entanto, ele seguia o pressuposto de que é permitido cultuar a Deus da maneira como a Bíblia ordena e também com o que ela não proíbe. Naturalmente, ele pensava em questões simples, como a permissão do órgão para acompanhar os cânticos – coisa que a Bíblia nem ordena nem proíbe. Mas ele tinha certeza de que o culto deveria ser sóbrio, reverente e centrado na pregação da Palavra, com ênfase no evangelho de Jesus Cristo. Foi somente em anos posteriores que os reformados desvendaram com mais detalhes o PRC. O princípio deles era diferente do de Lutero: somente o que a Bíblia expressamente permite ou ordena pode ser realizado no culto público. Havia, é claro, divergências na radicalidade com que esse princípio era seguido: muitos puritanos usavam somente salmos nos cânticos, e sem instrumentos, por exemplo.

Porém, as questões urgentes para o nosso século são outras. Dado que a regra para o culto nas igrejas evangélicas atuais é que qualquer coisa feita com “boa intenção” ou que traga bons resultados é válida, é necessário reafirmar o PRC com estreiteza em suas implicações mais básicas. Faz-se também relevante trazer à pauta esse problema devido a abusos no ecumenismo que, na realidade, significam um total desapego pessoal a qualquer denominação. Refiro-me, naturalmente, à percepção do culto como um produto de consumo, sobre cuja escolha o critério mais importante é o meu gosto pessoal. Outra face do mesmo problema é a facilidade com que se pode transitar entre igrejas. É raro, em cidades desenvolvidas, encontrar um crente que sempre pertenceu à mesma igreja, ou até à mesma denominação. Dessa forma, o crente pode escolher a igreja que ele quiser com base no quanto ele gosta de tal ou qual liturgia: se com hinos ou com bandas de rock, com sermões sérios ou com palhaçadas, com oração silenciosa ou clamores gritantes...

E é lamentável ver cristãos bem intencionados dizer que isso é bom. Que é uma vantagem de nosso tempo que existam cultos para “todos os estilos”: dessa forma, cada crente, com sua cultura e personalidade, pode congregar na igreja em que ele mais se sente bem. E daí surgem liturgias montadas para estereótipos: cultos jovens com coisas bem “jovens”, muito rock, muitas piadas; salas para crianças que são verdadeiras creches cheias de brinquedos só para passar o tempo, com nada ou quase nada de ensino bíblico; etc. É tanto erro que é até difícil saber por onde começar a refutação.

Primeiro, o pressuposto de que o gosto pessoal é relevante só tem a possibilidade de fazer sentido se você tomar como pressuposto anterior que a Bíblia não dá regras e formas para o culto. Se o culto público possui regras claras e específicas na Bíblia, obviamente que o não gostar delas não tem importância. Claro que existem aqueles que dirão que a cultura da época e o gosto pessoal são mais relevantes que as leis bíblicas, mas com tais insanos não vale a pena perder tempo, pelo menos não agora. De outro modo, se a Bíblia realmente não oferecer leis para o culto e deixar essa questão em liberdade, então, sim, talvez o gosto pessoal seja de alguma relevância. Mas, como veremos nos próximos posts, esse não é o caso.

Segundo, o gosto pessoal ainda precisa de outro pressuposto para ser determinante: que o culto é feito pra você, e não para Deus. Nisso, os reformadores foram enfáticos: Soli Deo Gloria! Pergunte aos evangélicos, após um culto, o que eles acharam do culto e por quê. Garanto que a imensa maioria, se gostou, responderá algo em torno de “Porque eu me senti bem”, ou “Porque eu senti Deus falando comigo”, ou ainda “Porque eu senti uma alegria, uma coisa...”. Isso é típico daqueles que vão aos cultos para consumir emoções e incentivos, e não para adorar Deus. Semelhantemente, os que não gostaram vão dizer “Ah, porque eu não senti Deus falando muito comigo”. A resposta certa para que um culto seja avaliado como bom é “Os cânticos realmente exaltaram a obra de Cristo”; “O pastor pregou o evangelho com fidelidade à Bíblia”; “O tema do sermão realmente trouxe luz à Igreja para servir melhor ao Reino”. O não gostar deveria ser por motivos como “A Palavra não foi centralizada em Cristo”; “Os cânticos tinham letras muito egoístas”; “Esse pastor convidado falou heresia, blasfemou contra a Palavra”. O que quero dizer que o nosso gosto é importante somente à medida que se alinha com a vontade do Deus Triúno de ser glorificado. Se você não gosta do que Deus gosta, está em pecado e precisa se arrepender.

            Até aqui, dissemos que a Bíblia dá sim regras sobre o culto público. E também que o culto público tem a finalidade de glorificar o nome de Deus, e não de trazer satisfação pessoal. Lembre-se sempre de que você nunca deve sair de casa no domingo para ir “assistir ao culto”, e sim para “prestar culto”. Ora, se o culto não serve para me apetecer, e sim para glorificar uma só pessoa, o Senhor Deus, cujas normas são absolutas, segue-se que a pergunta que devo fazer a respeito de onde congregar e prestar culto não é “Qual culto me dá mais benefícios emocionais e sociais”, e sim “Qual igreja cultua Deus como ele deseja”. Se o culto é para a glória de Deus, ele deve ser prestado conforme sua vontade revelada, pois ninguém deve pensar que está agradando Deus em desobediência. Os adeptos do paradigma do gosto pessoal e do “fazer de coração” dizem que Deus se agrada de qualquer coisa bem intencionada. Isso é verdade? O que importa é “fazer para Deus”, “fazer de coração”, sendo irrelevantes as formas?

            Essa ideia tão comum baseia-se em uma confusão com o culto público e o culto particular. Por isso, é necessário dedicar algumas linhas sobre isso. É verdade que o culto a Deus, em sua totalidade, abrange o que fazemos em nossa esfera pessoal a cada minuto da vida e também o momento litúrgico do domingo. Vemos, na Bíblia, esses dois tempos de adoração bem distintos conceitualmente. O culto particular é regulado pelas normas gerais da Lei de Deus: honestidade, humildade, fé em Jesus, pureza, amor, fidelidade... e nisso sim nós podemos fazer o que quisermos se estivermos de acordo com essas leis. Isso significa que toda atividade humana que for adequada aos limites da Lei de Deus e da finalidade delas – glorificar Deus – pode ser executada, mesmo se não estiver explícita na Bíblia. E a razão disso é simples: seria impossível haver a menção na Bíblia de todo e qualquer tipo de atividade humana lícita. A Bíblia dá alguns princípios sobre o trabalho, mas não diz exaustivamente sobre todo trabalho possível. Logo, posso exercer qualquer profissão que glorifique Deus. O lazer também entra nessa categoria: todo lazer exercido dentro da Lei de Deus e para glorificá-lo é permitido. Por isso o cristão (não legalista) sabe que ele pode jogar videogame, ir ao cinema, jogar futebol e nadar na piscina sem se atormentar com o “Onde a Bíblia diz isso?”. É no culto particular que vale o princípio de 1Coríntios 10 – “Quer comais, quer bebais, façais tudo para a glória de Deus”.

           Crentes mais conservadores e legalistas tendem a diminuir a importância do culto particular, enquanto enaltecem o culto público dominical. Porém, a Bíblia nos mostra que ninguém realmente pode prestar um culto público agradável se o culto particular estiver cheio de pecado. Os profetas falam sobre isso o tempo todo (e.g. Isaías 1 e todo o profeta Malaquias). Prestar culto público sem a pureza no culto particular é hipocrisia, causa repugnância ao Senhor.

            Por outro lado, os crentes mais moderninhos tendem a banalizar o culto público por acharem que só o particular realmente importa. Assim dizem, por exemplo, coisas como “eu estou cultuando Deus o tempo todo, não preciso ir à igreja”. Também profanam o culto público ao tentar aplicar nele o mesmo paradigma que se dá ao culto particular, isto é, de fazer qualquer coisa que não seja proibida. Nesse caso, precisamos observar por que defendemos um pressuposto diferente. A grande questão é que o homem não sabe prestar culto a Deus. Todos somos maculados pela idolatria e pelo humanismo desde a corrupção original da natureza humana. É justamente por causa da tentativa de prestar culto com base em nossas próprias ideias que todas as religiões falsas surgiram. Consequentemente, um culto distorcido reflete uma percepção distorcida do próprio Deus. A fim de ensinar a seriedade e os atributos de Deus e de como ele deseja ser cultuado, deu o Senhor as cerimônias a Moisés.

            O autor de Hebreus descreve muito bem como os elementos do culto público da Lei davam ao adorador uma ideia de distanciamento de Deus. Eram três as áreas do tabernáculo; no Santo dos Santos, somente o sumossacerdote podia entrar para fazer propiciação. Os sacrifícios demonstravam claramente a grosseria do pecado humano, o merecimento da pena de morte. E, se um mínimo detalhe das regras do culto fosse descumprida, a pena era também a morte. Deus, dessa forma, revelava quão distante ele era em dignidade e santidade dos seres humanos. Porém, ao mesmo tempo, ele mostrava o outro lado: a promessa do Messias. Os sacrifícios mostravam a grave penalidade, mas ao mesmo tempo a imensa misericórdia de Deus ao prover um substituto. O Santo dos Santos era a imagem de um caminho que não poderia ser percorrido pelo povo até a presença de Deus, mas um representante abriria a vereda.

            Aprendemos, no Novo Testamento, que Jesus Cristo é o sumossacerdote que rasgou o véu do templo transitório, mas adentrou o Santo dos Santos celestial para dar ao seu povo livre acesso. Ele tornou cada um de nós sacerdotes, e purificou nossas consciências com o seu sacrifício único e definitivo. Ele nos capacitou com intrepidez para adorarmos o verdadeiro Deus diretamente, dando-nos alívio e regozijo. O seu corpo ressurreto é o novo templo (João 2). A adoração é prestada em espírito e em verdade (João 4), pois todas as figuras sombrias da lei cerimonial estão realizadas na obra de Cristo de uma vez por todas.

            Por isso, o culto público do Novo Testamento teve algumas mudanças. Não há mais necessidade de um espaço físico particular, pois o povo peregrino de Deus é a habitação do Espírito. O símbolo de pertencimento ao pacto deixou de ser a circuncisão para se tornar o batismo, pela alusão à purificação espiritual e por não mais ser necessário derramar sangue. Semelhantemente, a refeição sagrada tornou-se a ceia com pão e vinho, em memória do corpo e do sangue de Cristo entregues na cruz. Não mais matamos animais, porque o último substituto já foi morto.

            O que quero assinalar com tudo isso é que existe continuidade e descontinuidade entre o culto público de Israel e o culto público da Igreja. Naturalmente, elementos como templo, vestes sacerdotais, arca da aliança, sacrifícios, etc, não pertencem mais ao nosso culto, porque sua significância permanece plenamente satisfeita em Jesus. Porém, existem sim aspectos de continuidade, e um deles é a estrita observância das normas. Aquelas que Deus não disse que mudaram devem ser assumidas que continuam. Por isso, encontramos normas ainda válidas para o culto público da Igreja no Antigo e no Novo Testamentos. Tudo isso precisa ser bem estudado. Agora, veja como Deus é zeloso pelas suas leis: os dois filhos mais velhos de Arão resolveram oferecer para Deus um “fogo estranho”, contrário às normas. Resultado: fulminação – e não importa se “fizeram de coração”. Uzá, com toda a boa intenção de ajudar, tocou na arca do Senhor para que ela não caísse da carroça, e Deus o matou na hora por violar sua santidade e sua lei de que a arca jamais poderia ser tocada. Isso é coisa só do Antigo Testamento? Ora, lemos em 1Coríntios 11 que a profanação da ceia resultou também em disciplina divina com enfermidade e morte. Além disso, não lemos em nenhum lugar do Novo Testamento que houve descontinuidade na subordinação estrita à lei: portanto, não devemos considerar esse pressuposto transitório. Continuam valendo as ordens divinas: “Não removam nem acrescentem nada às minhas ordens” (Dt 4:2; 12:32)

            É comum que os crentes de raso entendimento distorçam alguns textos em prol dessa alegada descontinuidade. Por exemplo, a adoração em espírito e em verdade de João 4. Já vimos o que isso significa: que a adoração é direta a Deus, por meio do Espírito onipresente de Cristo. Jesus pretende contrastar a adoração restrita ao templo e às cerimônias com a adoração prestada por meio somente dele próprio, conforme o contexto indica. Nada há nesse texto para advogar que o culto pode ser regulado pela espontaneidade e pela criatividade. Outro exemplo é o de 2Coríntios 3:17, usado para justificar a liberdade na maneira de cultuar. Mas o contexto é totalmente outro. Paulo explica, em todo o capítulo 3, que somente pela regeneração operada pelo Espírito de Deus pode o homem compreender o evangelho prometido por Moisés. Não tem nada a ver com a subjetividade ideacional do culto, mas simplesmente com a liberação da mente e do espírito para crer em Jesus e entender as verdades da nova aliança nas Escrituras.
           
A compreensão das regras para o culto público não é simples – tanto é que nem Lutero conseguiu realizar esse trabalho totalmente. Existem regras transitórias e permanentes no Antigo Testamento, no livro de Atos, e até mesmo nas epístolas. Os próximos posts buscarão explicar pelo menos algumas dessas coisas.

            Ah, e eles serão mais curtos, prometo!


            André Duarte

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