Estamos chegando
ao final da série sobre o Princípio Regulador de Culto, na qual tenho procurado
expor quais são as formas pelas quais o povo de Deus deve adorá-lo no domingo e
como devem elas ser feitas. No próximo post, falarei um pouco sobre ofertas. Aqui,
quero tratar da questão da declaração pública do que a Igreja crê. Isso envolve
testemunho para os descrentes, manutenção da sã doutrina para os crentes e
fórmulas sistemáticas em forma de credos.
1. Textos de
prova.
Esse
assunto é um tanto difícil, porque há pouca evidência bíblica explícita para o
uso de declarações confessionais. Ainda assim, quero colocar alguns textos
bíblicos que falam sobre o quanto elas são importantes. Em primeiro lugar,
temos diversas ordens dos salmos para fazermos proclamações em voz alta no
culto público. “Na presença dos fiéis, proclamarei o teu nome” (Sl 52.9); “Falarei
dos teus feitos poderosos, ó Soberano Senhor; proclamarei a tua justiça,
unicamente a tua justiça” (Sl 71.16). Um particularmente interessante é o do salmo
22, messiânico: “Proclamarei o teu nome a meus irmãos; na assembleia te
louvarei”. Curiosamente, não é apenas Davi que diz isso, mas também Jesus
Cristo proclama no culto a grandeza de Deus conosco, conforme Hebreus 2.11, 12.
O fato de que os salmos falam sobre a declaração da grandeza de Deus aos fiéis,
de maneira não necessariamente vinculada ao cântico e à leitura da Bíblia, e
ainda no contexto do culto público (a “assembleia”), já nos indica que a
confissão de fé é parte do culto dominical. Perceba também que a proclamação da
qual Davi fala não pode ser também identificada com a pregação, pois ele era
rei, e não levita. Essa proclamação, portanto, deve pertencer ao povo comum.
Essa
realidade não é apenas declarada no Antigo Testamento. As chamadas epístolas
pastorais também nos dão indícios de que a Igreja neotestamentária também usava
fórmulas para expressar a doutrina cristã claramente. Diversas vezes, Paulo usa
a expressão “Esta afirmação é digna de aceitação”, e refere-se várias vezes à
apreensão da “sã doutrina”. E em certas passagens, ele escreve uma declaração
dessa sã doutrina de maneira poética e sistemática. Por exemplo: “Não há dúvida
de que é grande o mistério da piedade: Deus foi manifestado em corpo,
justificado no Espírito, visto pelos anjos, pregado entre as nações, crido no
mundo, recebido na glória” (1Tm 3.16). A ênfase em que se ensine e proclame a
doutrina tal qual fora passada (2Tm 3.10) sugere que a Igreja já era acostumada
com frases resumidas da fé cristã. Nessa mesma fase de transição da Igreja
apostólica para pós-apostólica, vemos também os ensinos concisos e assertivos
de João, em suas epístolas, especialmente no que se refere à confissão. Veja a
frequência, na primeira epístola, dos termos “Aquele que diz X é isso; aquele que
diz Y é aquilo” (1Jo 1.6, 8, 10; 2.4, 22, 23; 4.3, 4, 20). Certamente, João
desejou que, após sua morte, a Igreja tivesse com clareza os tópicos
fundamentais da fé cristã a fim de que, pela confissão, fossem distinguidos os
verdadeiros crentes dos demais. Sei que essas passagens, por si sós, provam
pouco, mas creio que elas estão em harmonia com outras passagens e argumentos
que estou usando, como os salmos supracitados.
A
declaração de fé é enfatizada diversas vezes na Escritura também no contexto de
evangelismo. São bem conhecidas as afirmações de Jesus: “Todo aquele que me
confessa diante dos homens, eu o confessarei diante do Pai”. Jesus estava
falando, evidentemente, do culto particular, na vida ordinária dos crentes, em
qualquer circunstância em que fosse necessário confessá-lo como Senhor. Porém,
a Bíblia também deixa claro que o culto público é também ocasião de evangelismo
para descrentes. Que os descrentes deveriam ouvir a doutrina de Deus na Igreja,
na condição de visitantes, para se converterem, é afirmado claramente em
1Coríntios 14.20-25. Assim, a Igreja deve proclamar a sã doutrina aos
descrentes também no culto dominical.
Por fim,
temos os exemplos históricos desde o segundo século. O Credo Apostólico e o
Credo Niceno estão entre os mais famosos e antigos da Igreja. Devido à
multiplicação de heresias, foi necessário formular credos mais amplos e
catecismos. As igrejas reformadas, por exemplo, têm geralmente adotado a
Confissão Belga, a Confissão de Heidelberg e a Confissão de Westminster com o
Catecismo Maior e o Breve Catecismo.
O ponto a
que esses textos nos levam é que a Igreja deve, conjuntamente (sem perder a
ordem e a reverência no culto), declarar em alta voz a doutrina da fé cristã
nos pontos claros e fundamentais para a edificação dos fiéis e a exposição da
verdade aos visitantes.
2. Os benefícios
da confissão de fé.
Quase todas as
igrejas evangélicas atuais abandonaram o antigo costume de adotar confissões de
fé. Em outros casos, elas adotam, mas nunca a tornam pública para a congregação.
Ou, ainda, formulam uma confissão tão rasa que não ajuda a esclarecer quase
nada. O argumento mais comum contra a adoção de uma confissão de fé é a “sola
scriptura”. Dizem que uma igreja deve ter somente a Bíblia como regra, e não
uma confissão inventada por homens. O argumento é falacioso e desprezível, por
mais bem intencionado que esteja. Uma igreja confessional saudável deixará
claro para os membros que a confissão de fé não tem o mesmo nível de autoridade
que a Bíblia, e sim que ela é uma exposição resumida, clarificada e sistemática
do que essa igreja crê que a Bíblia ensina. A Bíblia tem pontos mais claros do
que outros, mais urgentes do que outros, mais polêmicos do que outros e mais
fundamentais para a sã doutrina do que outros. As confissões de fé buscam,
então, tornar essas coisas compreensíveis e simplificadas para o público. Uma
Igreja que diz que adota somente a Bíblia e nenhuma confissão de fé está se
enganando. Pois, se as confissões de fé são interpretações da Bíblia que cremos
ser fiéis, então elas não diferem substancialmente do que aquilo em que a
congregação de qualquer igreja assente quando ouve um sermão, quando canta um
louvor ou simplesmente quando participa do culto de qualquer forma. Nenhuma
igreja sobrevive sem apoiar-se em certa interpretação da Bíblia e, na
realidade, nenhuma atividade humana é possível sem a mediação da interpretação
do mundo. Portanto, o que igrejas confessionais fazem é atribuir unidade,
consistência e clareza na interpretação. As não-confessionais, por outro lado,
fazem da interpretação algo múltiplo, fluido, sem definição e sem publicidade. Eis
aí o ambiente propício para o afloramento de heresias.
Confissões
de fé trazem vários outros benefícios. Elas mostram aos crentes visitantes
exatamente que tipo de igreja está ali e o que ele pode esperar dela caso
deseje tornar-se membro. Elas limitam o poder dos pastores, de forma que eles
não podem pregar nada nem exercer tal autoridade que a confissão adotada não
autorize. Elas tornam os pontos fundamentais da fé claros e explícitos para que
nenhum membro da Igreja consiga disseminar heresias. Elas dão aos membros
sensação de consistência, coerência e, portanto, segurança. Elas também mostram
os critérios usados para a disciplina eclesiástica, para a acepção de novos
membros e para a doutrina que se permite ser ensinada. Também elas anunciam aos
descrentes, de maneira simples, as coisas em que a Igreja crê, e que todos os
membros podem proclamar como um só corpo para o mundo. Elas identificam a
igreja ali presente com a cristandade histórica, mostrando ao povo de Deus que
ela está inserida em um contexto maior, no qual Deus trabalha por séculos.
Nesse sentido, elas unem os cristãos presentes aos outros tantos que os
precederam.
Basta comparar igrejas confessionais com as não
confessionais e qualquer um admitirá qual dos tipos possui maior unidade na fé
e na comunhão. Fui de uma igreja não confessional por muitos anos e congrego
hoje em uma confessional histórica, e dá pra perceber que grande diferença faz.
Essa igreja não confessional, na verdade, até possui uma confissão de fé. Mas,
em todos os meus 15 anos como membro, somente duas vezes ela foi lida
publicamente (e eu sempre fui membro assíduo). E ela é tão curta que pode ser
lida inteira em menos de um minuto. Ela não explica praticamente nada. Em certo
lugar, ela diz “Cremos na ordenança da Ceia do Senhor”. E só. Não resolve nada
sobre transubstanciação, consubstanciação, simbolismo, quem pode ministrar,
quem pode participar, para quê serve, se pode pizza no lugar do pão, etc. O
único ponto específico e que não causa ambiguidade é o que afirma o continuísmo
dos dons, justamente o que consideramos errado. Não há absolutamente nada sobre
soteriologia. Teoricamente, uma pessoa pode pregar o calvinismo e o arminianismo.
Porém, na prática, existe um consenso entre os pastores sobre uma série de
coisas que nós membros nem ficávamos sabendo e pelas quais éramos repreendidos
mesmo assim. Unidade nenhuma pode subsistir nesse tipo de igreja.
Outra ilustração, pertinente ao que qualquer um no Brasil
pode observar, é o contraste entre igrejas batistas e presbiterianas. No geral,
apesar das exceções, as igrejas presbiterianas preservaram até hoje a sã
doutrina muito melhor do que as batistas. Há vários motivos por que isso
aconteceu, mas um deles é o seguinte: o povo das igrejas presbiterianas (no
geral) está repetindo a mesma confissão de fé domingo após domingo, enquanto o
das batistas não. A falta de consistência das igrejas batistas sobre sua
identidade deu entrada aos espíritos liberal, carismático e empresarial. Não há
dúvida de que, após uma ou duas gerações, os crentes que deixam de lado sua
confissão de fé histórica acabam esquecendo quem eles são.
André Duarte
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