1. Prefácio
Eu não sei
que tanto os cristãos em geral entendem sobre os deficientes segundo as
Escrituras. Muitos talvez nem pensem muito em deficientes, por não conviverem
com algum deles, não serem aparentados de um. Mas, acho que acerto quando
imagino haver pelo menos um ou dois deficientes em cada igreja. Outros cristãos
podem ter deficientes na família, mas não compreender devidamente o que a
deficiência significa à luz da Bíblia e da cruz. Por mais “esclarecido” que o mundo
se proclame a respeito deles, ainda existe, mesmo para cristãos, ideias
preconcebidas tortas, que misturam emoções e expectativas frustradas com racionalizações
teológicas. E isso deve ser levado a sério, porque a compreensão teológica e
espiritual errada sobre o deficiente resultará na maneira como ele é tratado na
família e na Igreja e, por fim, no próprio relacionamento dele com Deus. Não
podemos cair no humanismo deificador dos deficientes nem no descaso arrogante
com eles no contexto eclesiástico. É triste que muitos familiares de
deficientes nem mesmo pensem que a Bíblia fala sim sobre esse assunto e fornece
direcionamentos concretos, mesmo que em forma de princípios.
Antes de irmos até eles, preciso antes explicar algumas
coisas. Primeiro, não me envergonho de usar o termo “deficientes”. Estou ciente
das ladainhas intermináveis dos humanistas e psicólogos a respeito de como
essas pessoas (aparentemente inomináveis) devem ser chamadas. O termo “portador
de deficiência” e o “portador de necessidades especiais” já foram execrados,
porque o termo “portador” sugere alguém enfermo; o termo “excepcional” também
já caiu, e parece que o único termo ainda usado publicamente, de forma simples,
é “deficiente”. E sei que ele também não agrada todo mundo. Mas já vi o
suficiente para saber que nunca uma designação será plenamente felicífica. O
termo “deficiente” basta pra mim, sem qualquer insinuação maldosa que algum
reclamão puder imaginar. Segundo, estou cônscio do papel importante dos
psicólogos no auxílio aos deficientes. Já há anos, meu irmão e nós familiares
fomos abençoados com a atuação deles. Embora eu deteste quase tudo na
psicologia e considere-a praticamente um anticristo, reconheço essa centelha de
graça comum, que tanto tem beneficiado deficientes e suas famílias. Com este
post, não quero desmerecer as ajudas que os psicólogos podem oferecer aos
cristãos parentes de deficientes, mas apenas afirmar que o papel deles é
limitado. Eles podem ser exímios doadores de graça comum, mas em nada podem contribuir
na esfera da graça especial. Em outras palavras, desejo que os pais ou
responsáveis cristãos por deficientes saibam que podem fazer muito mais por
eles do que confiá-los aos psicólogos, embora possam também receber sabedoria
deles. Agora, vamos à Bíblia.
2. Êxodo 3:
Deficientes são chamados por Deus para a sua aliança.
Se não me
falha a memória, a primeira referência que as Santas Escrituras fazem aos
deficientes encontra-se em Êxodo 3. Ali, Deus comissiona Moisés a ser o
libertador do povo eleito. O leitor deve notar que Deus faz uma revelação ainda
maior do que a que ele fez a Abraão, Isaque e Jacó. Pela primeira vez, ele se
revelou como o YHWH, o Deus da aliança. Embora ele tenha prometido sua aliança
a Abraão, é apenas em Moisés que ele escolhe um mediador desse pacto. O Deus do
seu povo seria o Deus que efetua libertação e salvação por meio de um
intermediário. É nesse contexto maior que devemos ler as declarações de Deus
sobre sua soberania na criação e na eleição: “Quem fez a boca do homem? Ou quem
faz o surdo, ou o que ouve, ou o cego, ou o que vê? Não sou eu, o Senhor?”.
Isso foi uma resposta de Deus às desculpas de Moisés para não cumprir seu
comissionamento. Alegou ele que não sabia falar bem. Especula-se em vão sobre
sua gagueira. Ao meu ver, Moisés estava apenas atemorizado com o que haveria de
realizar, e Deus lhe responde que toda capacidade e incapacidade humana vêm
dele. É Deus quem livremente cria o “normal” e o deficiente, conforme deseja. E
isso deve ser visto não só no contexto da criação, mas também no da eleição
para a participação em sua aliança. O Deus do pacto, o Redentor do seu povo,
estava afirmando que a deficiência não é impedimento para a participação em sua
graça. Deficientes são bem-vindos ao povo de Deus.
O que isso
significa, na prática? Primeiro, que deficiência não é obra do diabo nem de
maldição para os cristãos. Trataremos da questão do castigo em breve. Por
enquanto, é necessário apenas firmar isto: que os deficientes foram criados
diretamente por Deus e exatamente como são, pela vontade soberana dele. O que o
salmo 139 fala sobre a formação do homem no útero pela mão de Deus, “Eu te louvo porque me fizeste de modo
especial e admirável. Tuas obras são maravilhosas! Disso tenho plena certeza.
Meus ossos não estavam escondidos de ti quando em secreto fui formado e
entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos viram o meu embrião; todos os dias determinados para mim
foram escritos no teu livro antes de qualquer deles existir.”, é igualmente
verdadeiro sobre qualquer deficiente. Não importa se a deficiência é física ou
mental. Todos vêm da mão de Deus e devem se recebidos como tais pela família
cristã e pela Igreja. É providência divina. Deus criou o homem à sua imagem, e
a imagem de Deus é sagrada. Tanto quanto os “normais”, são os deficientes
honoráveis imagens de Deus. Que os pais parem com as estupidezes de repreender
o demônio, levar a criança pra ser ungida, quebrar maldição hereditária e tudo
o mais que revela falta de fé e mesmo de amor. Que parem de fazer correntes de
oração e jejum e buscas implacáveis por milagres de cura. O deficiente foi
criado por Deus assim, e é da vontade dele que ele seja assim. E isso é sabido
pelo simples fato de ele ser assim. Com isso, não coloco em dúvida o poder de Deus
em curar, e não ignoro que Jesus tenha curado muitos deficientes em seu
ministério. Se Deus desejar curar o deficiente, ele fará isso (falo isso como
um cessacionista empático). O que afirmo é que a família do deficiente não deve
contar com isso e nem esperar por isso. É um exercício de fé muito maior
confiar que foi a boa e perfeita mão de Deus quem formou o deficiente, e que
como dádiva dos céus ele deve ser recebido.
Além do que
diz respeito à criação, precisamos ter consciência do que a parte da eleição
significa. Não foi apenas o Deus como criador quem declarou que os deficientes
são seus, mas sim o Deus da aliança, o redentor da Igreja. Em termos práticos,
isso significa que os deficientes devem sim ser aceitos como membros da Igreja,
batizados, doutrinados, disciplinados e considerados fraternalmente pelos
pastores e pelos membros. Não sei que espírito satânico cegou a Igreja a esse
respeito por tantos séculos, para que os deficientes tenham sido, através da
história, tão maltratados, exilados e condenados sem razão alguma,
principalmente os deficientes mentais. É para a nossa vergonha que admito terem
sido os psicólogos, e não os clérigos, a terem começado a pensar nos
deficientes com mais humanidade. As Escrituras nos dizem vez após vez, no contexto
eclesiástico, que os membros devem considerar uns aos outros, suportar uns aos
outros, levar as cargas uns dos outros, amar uns aos outros. Deficientes
possuem também necessidades particulares e devem receber dessa mutualidade.
Famílias com deficientes mentais precisam do apoio dos membros. Por vezes, a
família mal pode prestar culto público, por causa do deficiente mental. Que os
membros ajudem, cuidando dele durante o culto, como se faz aos bebês de
berçário. Fico muito feliz e grato por congregar em uma igreja onde isso
acontece.
3. João 9: Os
deficientes foram criados para a glória de Deus.
Nesta
famosa passagem, os discípulos perguntam a Jesus de quem foi a culpa para que
aquele cego houvesse nascido assim. Para começar, a pergunta deles não estava
totalmente errada. Algumas vezes, os deficientes são dados como punição pelos
pecados. Assim Davi amaldiçoou Joabe pelo seu homicídio, e Deus mesmo, por meio
de Samuel, amaldiçoou a descendência de Eli pelo descaso dele com as leis do
culto. Os cristãos não devem temer esse tipo de maldição, como já dissemos,
porque a obra de Cristo já cancelou todo tipo de maldição. Mas a disciplina de
Deus continua. O pecado de pais cristãos pode sim resultar na disciplina de
Deus por meio de um filho deficiente. Porém, de um ponto de vista casuístico,
isso é um mistério. Ninguém pode acusar ou julgar pais de deficientes de terem
culpa nisso. Seria a mesma condenável atitude dos amigos de Jó. Aos irmãos,
cabe a misericórdia e a empatia; a Deus pertence o conhecimento de causa.
No caso
daquele cego, Jesus revelou que não era punição de Deus por um pecado, e sim
uma dádiva que manifestaria a glória dele. Por causa daquela cegueira, Jesus
pôde realizar um milagre de cura público que muito contribuiu para o
reconhecimento da glória de Deus. É o “mal” transformado em bem. Independentemente
de punição ou não, os cristãos precisam confiar que os deficientes de sua
família ou Igreja foram dados por Deus para manifestarem sua glória também. E
muito enganados estão os que pensam que isso só pode se dar pela cura
miraculosa. Qualquer estudioso da Bíblia sério sabe que Deus tem a sua
glorificação como fim de todas as coisas, e que ele soberanamente age para
tanto por meio de quaisquer circunstâncias. Se os deficientes forem tratados
como Deus prescreve por meio do chamado à sua aliança, ficará bem claro para a
Igreja como a glória de Deus se manifesta por meio deles. Deficientes não são
exceção no plano de Deus e no seu bom propósito para todas as coisas. Pensem em
que grandioso testemunho da bondade e da justiça de Deus a Igreja daria perante
o mundo se tratasse os deficientes como irmãos em Cristo. Mas parece que vemos
o contrário: a Igreja está buscando no mundo as direções sobre os deficientes.
Ora, o mundo descobriu que se deve respeitar os deficientes há menos de 100
anos, enquanto a Igreja já deveria saber disso desde Moisés. Que grande necessidade
temos nós de arrependimento e de reparação!
4. Salmo
8: Deus prega aos deficientes
também.
No
versículo 2, está escrito que Deus firmou o seu nome nos lábios dos
recém-nascidos; Jesus cita esse salmo segundo a Septuaginta, dizendo que Deus
suscitou louvor deles. Lembremo-nos também da bênção que Jesus concedeu às
crianças, dizendo “dos que são como elas é o reino dos céus”. Tais crianças,
segundo o grego, eram bebês de peito. Que isso tem a ver? Que é um grande erro
nosso pensar que somente pessoas adultas e mentalmente normais são capazes de
adorar Deus e serem aceitas por ele. Bebês não possuem entendimento nenhum, e
mesmo assim eles louvam o Senhor e pertencem ao reino dos céus (desde que sejam
filhos de crentes, conforme a promessa da aliança). Por que, então, deveríamos
excluir os deficientes mentais do ministério da pregação, como se a
incapacidade mental deles fosse mais forte que o poder do Espírito? É grande
tolice pensar que, uma vez que os deficientes são salvos, podem eles prescindir
dos meios de graça que enriquecem o relacionamento deles com o Senhor. Os pais
e a Igreja devem sim ensinar a Palavra de Deus aos deficientes mentais, mesmo
que pareça que eles não estão entendendo nem se importando. Digo isso porque
muitas igrejas são boazinhas e gentis com os deficientes, mas não gastam tempo
nenhum introduzindo-os na comunhão, no ministério do ensino e da pregação.
Algumas até possuem pessoas que cuidam dos deficientes durante o culto para
ajudar os pais, mas não fazem mais do que enrolar e passar o tempo. Deficientes
devem sim receber dos responsáveis, tanto os da família como os da Igreja, o
ensino da Bíblia e as orações em conjunto. Se eles podem participar
conscientemente, melhor ainda; mas, se não têm compreensão mental alguma, mesmo
assim devem ouvir a Palavra orada e pregada. E, é claro, o próprio
relacionamento construído entre o responsável e o deficiente é uma experiência
espiritualmente enriquecedora para ambos. Não sabemos o que Deus pode operar
secretamente no coração do deficiente, mas ele sabe. Se ele faz isso a bebês
recém-nascidos, certamente não é a idade ou maturidade mental que o impede. Ele
fez da sua Palavra o meio de edificar e santificar a sua Igreja, e não dispôs
nenhuma exceção para os deficientes.
Além disso,
lembremo-nos de que o Espírito falou a pessoas de várias nações por meio do dom
de línguas dos apóstolos. Uma das maiores bênçãos do evangelho é o seu poder de
quebrar as barreiras de comunicação. E devemos crer que o mesmo Deus que
proclama o seu evangelho a todos os povos também o faz na linguagem do
deficiente. Nós humanos não sabemos como nos comunicar de forma que os
deficientes mentais entendam, mas Deus, em seu secreto conselho, sabe. E ele
santificará os deficientes de seu pacto pela sua Palavra pregada, e a imprimirá
em seus corações, porque foi para isso que ele os chamou. Deficientes não
entendem a Bíblia? Diante de Deus, eles entendem tanto quanto você.
5. Uma última ilustração.
Quando os
filisteus invadiram Israel e derrotaram o rei Saul, um neto dele chamado
Mefibosete caiu das mãos de sua ama quando ainda era criança e ficou
permanentemente aleijado. Quem herdou o trono, após várias complicações civis,
foi Davi. O que poderiam esperar os descendentes de Saul que ainda restavam,
senão a morte? No entanto, Mefibosete foi acolhido por Davi tão amorosamente
que passou a comer na mesa do rei pelo resto da vida. Mefibosete bem sabia que
sua deficiência seria um peso para o rei, sem falar na indignidade de sua
ascendência. Mas, por causa da aliança de amizade que Davi fez com Jônatas, o
pai de Mefibosete, cumpriu ele sua palavra de abençoar seu filho.
Essa história
bem ilustra com que carinho e consideração devem ser tratados os deficientes na
Igreja. Essa lição é um reflexo do próprio evangelho. Somos nós os indignos por
ascendência, filhos de Adão, filhos do diabo, filhos da ira. Pra ficar pior,
somos nós os mancos, que não podemos dar um só passo para pedir clemência ao
grande rei. Mas esse tão bondoso rei estabeleceu aliança eterna por meio de
Jesus Cristo, o sumossacerdote que levou sobre si nossas enfermidades (Is 53),
que padeceu todas as fraquezas humanas em sua carne (Hb 5). E, por intermédio
dessa aliança, somos nós conduzidos à presença do Rei dos reis e convidados ao
banquete celestial por toda a eternidade. Se você ainda tem dificuldades para
aceitar os deficientes em sua família, se eles mais parecem um peso incômodo do
que um presente de Deus; se você teme se envolver com os deficientes de sua
igreja, afirmo que é o poder desse evangelho que iluminará o seu caminho. Pela
multiforme sabedoria de Deus revelada no evangelho, você pode imitá-lo e tratar
os deficientes como irmãos em Cristo e partícipes do pacto da graça.
André
Duarte
Palavras abençoadas! Duras para muitos, mas amorosas ao mesmo tempo. Bonito perceber que na convivência com o irmão deficiente não há pesar, mas sim alegria e motivação para buscar igualdade. E ainda partilhar com os demais dessa felicidade que é descobrir o privilégio do convivio com um deficiente. Gostei da redação também, gostosa leitura e português impecável!
ResponderExcluirConcordo em tudo com o q a Claudia disse acima. Tenho um sobrinho especial, e sempre falo pra minha irmã q ele é um "presente de Deus" !
ResponderExcluirParabéns e abraços.
Você disse tudo e esse é tempo de levantarmos e assumirmos a nossa posição de filhos de um Rei que veio pra Todos,o Reino de Deus e pra todos ,e eu lutarei até o dia que Jesus voltar pra que as pessoas vejam que Jesus também veio para os deficientes, e que eles também são filhos e tem direito de estarem na casa do pai
ResponderExcluirVerdade,gostei da explicacao.
ResponderExcluirEu simplesmente amei essa explicação, me ajudou muito mesmo!
ResponderExcluirQue o Senhor Jesus continue te usando poderosamente!!!
Quando precisamos deixar nosso filho com alguém para tomar conta, sempre procuramos alguem muito responsável e que tenhamos a certeza de que irá zelar da melhor forma possível. Assim é Deus quando confia uma criança especial ou com alguma limitação perante a sociedade. Deus entrega seus filhos especiais somente para famílias ILUMINADAS.
ResponderExcluirDeus pode curar um deficiente mental?
ResponderExcluirDeus me deu esse previlegio de ter uma princesa especial. Foram 20 anos de amor e dedicação, só tenho a agradecer, esse período vivido . 🙏😇 Foi de muito aprendizado. 🙌🙌
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