Lá estava eu, em uma aula de Ética na UnB, não querendo prestar muita atenção na aula (olha que testemunho edificante!) e resolvo pensar no que João Calvino chamava de ministério tríplice de Jesus: rei, sacerdote e profeta. Esses ministérios são, no Antigo Testamento, essenciais para o povo de Deus obedecer-lhe idealmente. É necessário um rei teocrático para governar a vida da nação e administrar a justiça como Deus deseja. É necessário haver sacerdotes para ministrar ao povo a graça de Deus relativa à purificação dos pecados. E é necessário haver profetas para proclamar as palavras de Deus ao rei e ao povo, ensinando-lhes e corrigindo-lhes as falhas. Esse é o povo ideal para Deus.
Não sendo esses ministros capazes de cumprir esse ideal, havendo corrupção material e espiritual por parte dos reis, dos sacerdotes e dos profetas, Deus envia o seu Filho, Jesus Cristo, para convergir em si essas três funções e executá-las com perfeição e supremacia. Jesus Cristo é o verdadeiro rei, governando toda a criação de Deus no trono dos céus, regendo o curso do universo, destruindo os seus inimigos e zelando pelos seus irmãos. Ele é o verdadeiro sacerdote prefigurado por Melquisedeque, intercedendo pelos nossos pecados diante do Pai e provendo-nos a purificação interior para a santidade, sendo o mediador da nossa salvação. E ele é o verdadeiro profeta, ensinando-nos os caminhos de Deus continuamente por meio do Espírito Santo e anunciando o reino de Deus com clareza e sabedoria máximas. Nosso ministro tríplice provê a nós, o seu povo, tudo o que necessitamos para cumprir a vontade do Pai e pertencer a ele.
A partir daí, comecei a pensar um pouco mais. Lembrei que na carta aos hebreus, Jesus é descrito não só como o perfeito sacerdote, mas também como o perfeito sacrifício. O sacrifício é o objeto direto da atuação sacerdotal. Então, perguntei-me “E quanto aos outros ministérios, Cristo também não realizaria o seu contraponto?”. No ministério de rei, o contraponto é o servo. Jesus veio, como ele disse, para servir e dar a sua vida em resgate por muitos. O rei do universo tornou-se um homem servil, que passava o seu tempo curando pessoas, alimentando famintos e vivendo em função do seu ato mais servil, o seu sacrifício. Seu exemplo para os discípulos foi lavar-lhes os pés, ensinando-os a serem escravos. Diante de Pilatos, Jesus não reivindicou ser o novo César, mas apenas disse “o meu reino não é deste mundo”. Bem, o ponto do rei é simples de ver; o do profeta foi mais difícil. O contraponto do ministério do profeta é a palavra que ele profere. Seguindo o raciocínio, Jesus seria também, além de profeta, a palavra. Podemos entender que Jesus é o cumprimento da palavra dos profetas antigos, e a própria palavra de Deus enviada em forma humana. Jesus não apenas falou sobre o Pai, mas ele revelou o Pai em sua pessoa, como disse a Filipe “Quem vê a mim vê o Pai”. Vemos assim como Jesus convergiu em si a totalidade de todas as coisas: ele é rei e servo, sacerdote e sacrifício, profeta e palavra.
Minha próxima pergunta para mim mesmo (porque debater comigo mesmo é bem gratificante, eu e minha pessoa nunca discordamos) foi “De que forma Jesus pode cumprir um ministério e seu contraponto, se isso parece contraditório?”. E respondi: ele atuou de forma diferente na terra e no céu. Jesus, como o Deus da criação, é rei, sacerdote e profeta. Tais ministérios são exercidos no céu. É do céu que Jesus reina, assentado à destra do Pai. É do céu que ele propicia a graça; como diz a carta aos hebreus, nosso sumossacerdote adentrou o tabernáculo celestial. E é do céu que ele envia o Espírito Santo para orientar-nos segundo a vontade dele. Mas foi na terra que ele atuou como servo, submetendo-se às limitações humanas, à cultura defeituosa de um determinado tempo e espaço, a governantes humanos e até mesmo aos mais marginalizados – ele foi o escravo dos escravos. Na terra, ele foi o sacrifício único e definitivo, pois somente como homem poderia ele morrer, e somente vivendo uma vida humana perfeita poderia ele ser o sacrifício de absoluta pureza e eficácia para os homens. Também na terra ele foi a palavra, pois os profetas predisseram um Messias humano, e somente como homem Jesus poderia tornar Deus tangível aos sentidos humanos e ser, nesse sentido, a revelação do Altíssimo aos homens.
Minha última pergunta foi “Que implicações o seu exercício na terra nesses papéis traz para o seu povo?”. Bem, sua vida servil nos ensina a sermos servos uns dos outros, o que ele ensinou lavando os pés dos discípulos, dizendo que “Neste mundo, os governantes são os que exercem poder sobre os outros e são chamados senhores; entre vocês, será o contrário, pois o maior de vocês deverá ser o escravo de todos” e em várias outras ocasiões. O livro dos Atos e as epístolas ensinam-nos sobre como a Igreja vivia em serviço mútuo. A carta aos filipenses cita o exemplo de Cristo para ensinar a humildade. Além disso, seu sacrifício ensina-nos a vivermos como sacrifícios vivos e agradáveis a Deus, como diz Romanos 12. Jesus nos ensinou a negarmos a nós mesmos e tomarmos nossa cruz. Ser sacrifício significa consagração e pureza, pois Deus não se agrada de sacrifícios defeituosos (e a graça de Jesus, o perfeito sacrifício, cobre nossos eventuais defeitos). Santidade é o conceito-chave para sermos sacrifícios vivos a Deus. Por último, Jesus como palavra ensina-nos e capacita-nos a sermos “palavrinhas” de Deus, para que assumamos o caráter divino e o revelemos ao mundo. Como disse Gregório de Nazianzo, Deus se tornou homem para que o homem se tornasse Deus.
E minha nota de rodapé foi “Se podemos, como humanos mortais, cumprir o que o Jesus humano cumpriu, não podemos também cumprir o seu ministério celestial em face da posse da vida eterna?”. Sim, mas não hoje. A Igreja é chamada por Pedro do que Israel é chamado por Deus: um reino de sacerdotes. O Apocalipse coloca os crentes do reino messiânico como reis com Cristo, como sacerdotes diante do mundo e como seus profetas, testemunhas de Deus. Como isso ocorrerá, é um mistério, mas temos essa esperança. Ela inicia na terra, de forma imperfeita, mas será perfeitamente cumprida quando o Rei dos reis voltar.
Aí eu voltei a prestar atenção na aula.
(Desculpem-me pela falta de referências, é que eu estou na UnB no bloco do BSA, onde não tem internet para eu consultar o Bíblia online)
André Duarte