sexta-feira, 7 de março de 2014

Orando biblicamente

            Quero tornar ao assunto da oração, já tratado em alguns posts, para expor alguns regulamentos bíblicos sobre esse meio de graça tão precioso e nos ajudar a orar melhor. Hoje em dia, é comum tratarmos a oração como uma atividade banal e livre, como se não houvessem regras bíblicas para nos dar parâmetros e limites. O pressuposto costuma ser mais ou menos assim: Deus quer que eu me dirija a ele com sinceridade, autenticidade e espontaneidade, pois ele é meu Pai. Logo, posso falar com ele como eu bem entender. Devo falar com ele aquilo que está em meu coração, o que eu estiver com vontade de falar, pois ele me entende. Eu já pensei assim, e não faz muito tempo que estou mudando essa maneira de pensar. Passei a maior parte da minha vida fazendo da oração um bate-papo: eu falava qualquer coisa sobre o meu dia, com alguns pedidos e agradecimentos, e pronto. Agora, pense também neste exemplo corriqueiro: se um descrente que acaba de se converter nos pergunta “não sei bem como orar; como eu faço?”, geralmente respondemos algo como “é só falar normalmente com Deus, como se ele fosse seu pai ou seu amigo”. Porém, a pergunta “como orar?” realmente é uma pergunta bíblica explícita, que os discípulos fizeram a Jesus, e a resposta dele foi bem diferente. Ele nos ofereceu um modelo de oração conhecido como o Pai Nosso, ou a Oração Dominical, e acrescentou algumas observações. Não quero me centralizar tanto na exposição do Pai Nosso, mas apenas introduzir a verdade de que a oração, embora deva ser feita de todo o coração e com toda a sinceridade, possui sim regulamentos bíblicos e não está ao nosso dispor para fazermos como bem entendermos. Como em qualquer outro mandamento bíblico, o espírito sincero e alegre deve estar em harmonia com as regras e os limites, dos quais vou apenas destacar três:

            1. O nome de Jesus
        
        Jesus ensinou várias vezes que devemos orar em nome dele. Agora, isso tem uma importância teológica e espiritual fundamental que costuma não ser notada. Distorcemos completamente o significado de orar em nome de Jesus, e reduzimos essa ordem a um mero pronunciar “em nome de Jesus” no final da oração. Como se orar em nome dele significasse simplesmente repetir essa frase mecanicamente. Quando eu era criança, achava que esse era o termo que validava a oração. Deus estaria me ouvindo pacientemente e, se eu não dissesse “em nome de Jesus”, ele diria “ah, essa não vale, não vou responder”. É claro que orar em nome de Jesus é muito mais do que isso. Basta pensar um pouco no que significa fazer qualquer coisa em nome de um terceiro. Orar a Deus o Pai em nome do seu Filho tem, no mínimo, duas implicações básicas para o ato de orar: primeiro, que é pela intermediação de Jesus que nós nos dirigimos ao Pai. Isto é, na oração, você deve reconhecer que, se não fosse pela mediação única de Jesus Cristo, você não teria qualquer direito de falar ao Deus santíssimo. Com efeito, você, pecador impuro, mereceria ser consumido por fogo por se atrever a falar com o Deus santo, puro, altíssimo e cheio de luz. No entanto, ele mesmo proveu para você, por pura graça, o seu Filho como sumossacerdote eterno e eficaz. Cristo ofereceu a si mesmo na cruz como sacrifício maldito, tomando o seu lugar, e agora permanece diante de Deus intercedendo por você. A única razão para que Deus ouça a sua oração é que Jesus já está também “orando” por você, se você pertence a ele. Se não fosse por ele, o estatuto de Deus para você não seria outro além de: “Deus abomina a oração do ímpio” (Pv 15.8, 29; 28.9). Portanto, orar em nome de Jesus significa isso, orar por meio dele, apresentar sua comunicação pela fé nele. Em uma cultura, mesmo na evangélica, em que a oração é tratada como um direito automático e grátis, essa verdade precisa ser ressaltada.
           
O segundo significado de orar em nome de Jesus é orar segundo a vontade dele. Estamos familiarizados com o que disse João: que ele nos ouve se pedirmos segundo a sua vontade. Mas como sabermos se realmente estamos pedindo o que Jesus aprovaria? Evangélicos de tendência mística não sabem o que fazer com essa questão, e ficam tentando intuir, para cada situação particular, a validade de suas petições. Mas quem compreende a suficiência da Escritura deve saber que a Bíblia mesmo nos diz quais orações são da vontade de Deus. Ele mesmo, em inúmeros textos, proveu-nos material para usarmos em nossas orações, e aquilo que ele inspirou certamente o agrada, e certamente receberá a sua resposta. Ao orar em nome de Jesus, você reconhece as Santas Escrituras como a autoridade suprema sobre a sua oração. É evidente que, sem essa base do nome de Cristo, é impossível orar adequadamente, não importando quão sinceros sejam os seus desejos e suas angústias. Tiago repreendeu os crentes por “pedirem mal”, que ele descreve como “para os seus próprios desejos egoístas”. Os textos bíblicos orientadores da oração são contrários a esse espírito idólatra e mesquinho. Portanto, é necessário inteirar-nos deles. Esses são os nossos segundo e terceiro pontos.
           
            2. Os salmos

        Insisto, como já fiz outras vezes, que o cristão deve aprofundar-se nos salmos com todas a suas forças. Neles, encontramos a maior parte da teologia sobre o ser de Deus que há no Antigo Testamento, e lemos orações e cânticos inspirados. É maravilhoso ver que o próprio Deus nos disse o que ele quer que nós digamos a ele, e é um pecado negligenciar isso. Realmente, muitos crentes dizem gostar de ler os salmos, mas, na verdade, leem apenas alguns favoritos, e ainda os interpretam mal. Todos os salmos são importantes, pois em todos o salmista se dirige a Deus ou medita sobre ele. Para começar, temos salmos messiânicos (2, 16, 22, 45, 72, 89, 110, 118 etc). Por meio deles, podemos orar adorando e agradecendo a Deus pela salvação em Jesus Cristo e pelo seu império sobre nós. Temos salmos penitenciais, como o 32, o 51 e o 73, que nos ajudam a confessar nossos pecados e clamar pelo perdão de Deus e por seu auxílio. Vários salmos são ações de graças pela providência de Deus na história, como o 18, o 78 e o 136, ensinando-nos a fazer o mesmo com relação à história da Igreja e mesmo a nossa pessoal.

E, evidentemente, há inúmeros salmos que são verdadeiros louvores a Deus por tudo o que ele é e fez, e que conclamam toda a terra para adorá-lo. Precisamos começar nossas orações com adoração, e com esse forte senso de que toda a criação deve também adorá-lo. Isso nos leva às legítimas petições pela purificação da Igreja, resistência dos missionários, coragem dos pregadores, conversão das nações, destruição dos inimigos de Cristo, bem como pelo auxílio de Deus em nossa própria vida em todos esses sentidos. Há também muitos salmos imprecatórios, nos quais o salmista é afligido por inimigos e pede pela vingança de Deus sobre eles. É também legítimo orar nesse sentido, com a consciência de que o salmista não é motivado por ódio pessoal, e sim pela ira justa direcionada à rebelião dos ímpios contra a Lei de Deus. Tudo isso deve ser colocado no contexto do “buscar o reino de Deus”, e o leitor atento perceberá facilmente que todos os salmos são voltados ultimamente para esse fim.

Faltou ainda um salmo muito importante (assim como outros parecidos): o 82, no qual o salmista exorta os governantes da terra a se submeterem ao império de Deus. Isso está de acordo com o que Paulo manda em 1Timóteo 2, que oremos pelos reis, a fim de que a Igreja tenha paz. É muito importante lembrarmos de orar pelas autoridades civis da nossa cidade, nação e do mundo. Que eles governem segundo os preceitos de Deus, parem de se rebelar e ajam para proteger a Igreja.

3. O Pai Nosso

Por fim, temos a Oração Dominical, sobre a qual já fizemos um post inteiro. Essa oração possui seis petições, sendo as três primeiras a respeito exclusivamente de Deus, e as três seguintes em favor de nós mesmos. As petições sobre Deus expressam o desejo de que o nome de Deus seja adorado e reverenciado por toda a terra; que o reino de Deus cresça e imponha sua autoridade, derrotando o reino de Satanás; que a vontade imperiosa de Deus seja obedecida pelos homens assim como os anjos obedecem. As petições por nós clamam pelo sustento de Deus sobre nossas necessidades, seu perdão pelos nossos pecados e sua proteção para que não pequemos. Se alguém desejar se aprofundar no significado dessas petições, sugiro que leia o Catecismo Maior de Westminster. O estudioso deve perceber que essa oração é perfeitamente harmoniosa com os temas dos salmos. E é debaixo desses parâmetros que devemos orar. Especialmente a respeito das petições por nós, é necessário atentar-nos para o que essa oração manda, para que saibamos firmemente quais são as nossas maiores necessidades. Elas limitam petições egoístas e fúteis e nos ensinam sobre quem nós somos e do que precisamos diante de Deus.

E as nossas ansiedades?

Todos sabem que Paulo diz aos filipenses para que lancem sobre Deus as suas ansiedades. Com essas palavras, podemos nos juntar aos salmistas que sofrem perseguição e desilusão e orar pelo conforto de Deus e por sua intervenção. Porém, não devemos esquecer que esse texto é harmônico com o “não andeis ansiosos” do sermão do monte. Ansiedade é, de várias maneiras, pecado. Assim, quando estivermos ansiosos, devemos orar primeiramente para que Deus nos ajude a extirpar esse sentimento que, em sua base, é falta de fé (conf. Salmo 42). Isso se dá quando fazemos como os salmistas fazem: meditar nos atos de Deus e adorá-lo por quem ele é (salmo 103). Fica claro então que lançar as nossas ansiedades sobre Deus deve ter coerência com os parâmetros de oração do Pai Nosso e dos salmos; na verdade, é a única maneira de realmente recebermos conforto de nossas angústias. Se a sua oração tiver como principal a adoração, não há tribulação que você não possa suportar.

Além disso, o Pai Nosso e os salmos nos ensinam sobre quais coisas devemos ansiar: o reino de Deus, a nossa purificação e tudo o mais que já dissemos. Se lançarmos essas ansiedades sobre Deus, é certo que ele nos responderá, pois são anelos da vontade dele. Então, antes de se dirigir a Deus falando o que lhe vier à cabeça, pare e pense um pouco. Lembre-se de quem é Deus, a que Rei você está oferecendo súplicas, quem é você diante dele. Medite naquilo que é mais importante, naquilo que ele mesmo revelou na Palavra que deve ser motivo de oração e de desejo. Ninguém se dirige ao grande Rei e Juiz da maneira como parecer bem, nem escolhe os temas da comunicação a esmo. Que ele nos ajude a orarmos melhor, para que, através desse meio de graça inestimável, cresçamos espiritualmente e fiquemos mais parecidos com Jesus.


André Duarte

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A Bíblia e os deficientes


           1. Prefácio

Eu não sei que tanto os cristãos em geral entendem sobre os deficientes segundo as Escrituras. Muitos talvez nem pensem muito em deficientes, por não conviverem com algum deles, não serem aparentados de um. Mas, acho que acerto quando imagino haver pelo menos um ou dois deficientes em cada igreja. Outros cristãos podem ter deficientes na família, mas não compreender devidamente o que a deficiência significa à luz da Bíblia e da cruz. Por mais “esclarecido” que o mundo se proclame a respeito deles, ainda existe, mesmo para cristãos, ideias preconcebidas tortas, que misturam emoções e expectativas frustradas com racionalizações teológicas. E isso deve ser levado a sério, porque a compreensão teológica e espiritual errada sobre o deficiente resultará na maneira como ele é tratado na família e na Igreja e, por fim, no próprio relacionamento dele com Deus. Não podemos cair no humanismo deificador dos deficientes nem no descaso arrogante com eles no contexto eclesiástico. É triste que muitos familiares de deficientes nem mesmo pensem que a Bíblia fala sim sobre esse assunto e fornece direcionamentos concretos, mesmo que em forma de princípios.

            Antes de irmos até eles, preciso antes explicar algumas coisas. Primeiro, não me envergonho de usar o termo “deficientes”. Estou ciente das ladainhas intermináveis dos humanistas e psicólogos a respeito de como essas pessoas (aparentemente inomináveis) devem ser chamadas. O termo “portador de deficiência” e o “portador de necessidades especiais” já foram execrados, porque o termo “portador” sugere alguém enfermo; o termo “excepcional” também já caiu, e parece que o único termo ainda usado publicamente, de forma simples, é “deficiente”. E sei que ele também não agrada todo mundo. Mas já vi o suficiente para saber que nunca uma designação será plenamente felicífica. O termo “deficiente” basta pra mim, sem qualquer insinuação maldosa que algum reclamão puder imaginar. Segundo, estou cônscio do papel importante dos psicólogos no auxílio aos deficientes. Já há anos, meu irmão e nós familiares fomos abençoados com a atuação deles. Embora eu deteste quase tudo na psicologia e considere-a praticamente um anticristo, reconheço essa centelha de graça comum, que tanto tem beneficiado deficientes e suas famílias. Com este post, não quero desmerecer as ajudas que os psicólogos podem oferecer aos cristãos parentes de deficientes, mas apenas afirmar que o papel deles é limitado. Eles podem ser exímios doadores de graça comum, mas em nada podem contribuir na esfera da graça especial. Em outras palavras, desejo que os pais ou responsáveis cristãos por deficientes saibam que podem fazer muito mais por eles do que confiá-los aos psicólogos, embora possam também receber sabedoria deles. Agora, vamos à Bíblia.
           
            2. Êxodo 3: Deficientes são chamados por Deus para a sua aliança.

Se não me falha a memória, a primeira referência que as Santas Escrituras fazem aos deficientes encontra-se em Êxodo 3. Ali, Deus comissiona Moisés a ser o libertador do povo eleito. O leitor deve notar que Deus faz uma revelação ainda maior do que a que ele fez a Abraão, Isaque e Jacó. Pela primeira vez, ele se revelou como o YHWH, o Deus da aliança. Embora ele tenha prometido sua aliança a Abraão, é apenas em Moisés que ele escolhe um mediador desse pacto. O Deus do seu povo seria o Deus que efetua libertação e salvação por meio de um intermediário. É nesse contexto maior que devemos ler as declarações de Deus sobre sua soberania na criação e na eleição: “Quem fez a boca do homem? Ou quem faz o surdo, ou o que ouve, ou o cego, ou o que vê? Não sou eu, o Senhor?”. Isso foi uma resposta de Deus às desculpas de Moisés para não cumprir seu comissionamento. Alegou ele que não sabia falar bem. Especula-se em vão sobre sua gagueira. Ao meu ver, Moisés estava apenas atemorizado com o que haveria de realizar, e Deus lhe responde que toda capacidade e incapacidade humana vêm dele. É Deus quem livremente cria o “normal” e o deficiente, conforme deseja. E isso deve ser visto não só no contexto da criação, mas também no da eleição para a participação em sua aliança. O Deus do pacto, o Redentor do seu povo, estava afirmando que a deficiência não é impedimento para a participação em sua graça. Deficientes são bem-vindos ao povo de Deus.
           
O que isso significa, na prática? Primeiro, que deficiência não é obra do diabo nem de maldição para os cristãos. Trataremos da questão do castigo em breve. Por enquanto, é necessário apenas firmar isto: que os deficientes foram criados diretamente por Deus e exatamente como são, pela vontade soberana dele. O que o salmo 139 fala sobre a formação do homem no útero pela mão de Deus, “Eu te louvo porque me fizeste de modo especial e admirável. Tuas obras são maravilhosas! Disso tenho plena certeza. Meus ossos não estavam escondidos de ti quando em secreto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos viram o meu embrião; todos os dias determinados para mim foram escritos no teu livro antes de qualquer deles existir.”, é igualmente verdadeiro sobre qualquer deficiente. Não importa se a deficiência é física ou mental. Todos vêm da mão de Deus e devem se recebidos como tais pela família cristã e pela Igreja. É providência divina. Deus criou o homem à sua imagem, e a imagem de Deus é sagrada. Tanto quanto os “normais”, são os deficientes honoráveis imagens de Deus. Que os pais parem com as estupidezes de repreender o demônio, levar a criança pra ser ungida, quebrar maldição hereditária e tudo o mais que revela falta de fé e mesmo de amor. Que parem de fazer correntes de oração e jejum e buscas implacáveis por milagres de cura. O deficiente foi criado por Deus assim, e é da vontade dele que ele seja assim. E isso é sabido pelo simples fato de ele ser assim. Com isso, não coloco em dúvida o poder de Deus em curar, e não ignoro que Jesus tenha curado muitos deficientes em seu ministério. Se Deus desejar curar o deficiente, ele fará isso (falo isso como um cessacionista empático). O que afirmo é que a família do deficiente não deve contar com isso e nem esperar por isso. É um exercício de fé muito maior confiar que foi a boa e perfeita mão de Deus quem formou o deficiente, e que como dádiva dos céus ele deve ser recebido.
           
Além do que diz respeito à criação, precisamos ter consciência do que a parte da eleição significa. Não foi apenas o Deus como criador quem declarou que os deficientes são seus, mas sim o Deus da aliança, o redentor da Igreja. Em termos práticos, isso significa que os deficientes devem sim ser aceitos como membros da Igreja, batizados, doutrinados, disciplinados e considerados fraternalmente pelos pastores e pelos membros. Não sei que espírito satânico cegou a Igreja a esse respeito por tantos séculos, para que os deficientes tenham sido, através da história, tão maltratados, exilados e condenados sem razão alguma, principalmente os deficientes mentais. É para a nossa vergonha que admito terem sido os psicólogos, e não os clérigos, a terem começado a pensar nos deficientes com mais humanidade. As Escrituras nos dizem vez após vez, no contexto eclesiástico, que os membros devem considerar uns aos outros, suportar uns aos outros, levar as cargas uns dos outros, amar uns aos outros. Deficientes possuem também necessidades particulares e devem receber dessa mutualidade. Famílias com deficientes mentais precisam do apoio dos membros. Por vezes, a família mal pode prestar culto público, por causa do deficiente mental. Que os membros ajudem, cuidando dele durante o culto, como se faz aos bebês de berçário. Fico muito feliz e grato por congregar em uma igreja onde isso acontece.

            3. João 9: Os deficientes foram criados para a glória de Deus.
           
Nesta famosa passagem, os discípulos perguntam a Jesus de quem foi a culpa para que aquele cego houvesse nascido assim. Para começar, a pergunta deles não estava totalmente errada. Algumas vezes, os deficientes são dados como punição pelos pecados. Assim Davi amaldiçoou Joabe pelo seu homicídio, e Deus mesmo, por meio de Samuel, amaldiçoou a descendência de Eli pelo descaso dele com as leis do culto. Os cristãos não devem temer esse tipo de maldição, como já dissemos, porque a obra de Cristo já cancelou todo tipo de maldição. Mas a disciplina de Deus continua. O pecado de pais cristãos pode sim resultar na disciplina de Deus por meio de um filho deficiente. Porém, de um ponto de vista casuístico, isso é um mistério. Ninguém pode acusar ou julgar pais de deficientes de terem culpa nisso. Seria a mesma condenável atitude dos amigos de Jó. Aos irmãos, cabe a misericórdia e a empatia; a Deus pertence o conhecimento de causa.

No caso daquele cego, Jesus revelou que não era punição de Deus por um pecado, e sim uma dádiva que manifestaria a glória dele. Por causa daquela cegueira, Jesus pôde realizar um milagre de cura público que muito contribuiu para o reconhecimento da glória de Deus. É o “mal” transformado em bem. Independentemente de punição ou não, os cristãos precisam confiar que os deficientes de sua família ou Igreja foram dados por Deus para manifestarem sua glória também. E muito enganados estão os que pensam que isso só pode se dar pela cura miraculosa. Qualquer estudioso da Bíblia sério sabe que Deus tem a sua glorificação como fim de todas as coisas, e que ele soberanamente age para tanto por meio de quaisquer circunstâncias. Se os deficientes forem tratados como Deus prescreve por meio do chamado à sua aliança, ficará bem claro para a Igreja como a glória de Deus se manifesta por meio deles. Deficientes não são exceção no plano de Deus e no seu bom propósito para todas as coisas. Pensem em que grandioso testemunho da bondade e da justiça de Deus a Igreja daria perante o mundo se tratasse os deficientes como irmãos em Cristo. Mas parece que vemos o contrário: a Igreja está buscando no mundo as direções sobre os deficientes. Ora, o mundo descobriu que se deve respeitar os deficientes há menos de 100 anos, enquanto a Igreja já deveria saber disso desde Moisés. Que grande necessidade temos nós de arrependimento e de reparação!

4. Salmo 8: Deus prega aos deficientes também.

No versículo 2, está escrito que Deus firmou o seu nome nos lábios dos recém-nascidos; Jesus cita esse salmo segundo a Septuaginta, dizendo que Deus suscitou louvor deles. Lembremo-nos também da bênção que Jesus concedeu às crianças, dizendo “dos que são como elas é o reino dos céus”. Tais crianças, segundo o grego, eram bebês de peito. Que isso tem a ver? Que é um grande erro nosso pensar que somente pessoas adultas e mentalmente normais são capazes de adorar Deus e serem aceitas por ele. Bebês não possuem entendimento nenhum, e mesmo assim eles louvam o Senhor e pertencem ao reino dos céus (desde que sejam filhos de crentes, conforme a promessa da aliança). Por que, então, deveríamos excluir os deficientes mentais do ministério da pregação, como se a incapacidade mental deles fosse mais forte que o poder do Espírito? É grande tolice pensar que, uma vez que os deficientes são salvos, podem eles prescindir dos meios de graça que enriquecem o relacionamento deles com o Senhor. Os pais e a Igreja devem sim ensinar a Palavra de Deus aos deficientes mentais, mesmo que pareça que eles não estão entendendo nem se importando. Digo isso porque muitas igrejas são boazinhas e gentis com os deficientes, mas não gastam tempo nenhum introduzindo-os na comunhão, no ministério do ensino e da pregação. Algumas até possuem pessoas que cuidam dos deficientes durante o culto para ajudar os pais, mas não fazem mais do que enrolar e passar o tempo. Deficientes devem sim receber dos responsáveis, tanto os da família como os da Igreja, o ensino da Bíblia e as orações em conjunto. Se eles podem participar conscientemente, melhor ainda; mas, se não têm compreensão mental alguma, mesmo assim devem ouvir a Palavra orada e pregada. E, é claro, o próprio relacionamento construído entre o responsável e o deficiente é uma experiência espiritualmente enriquecedora para ambos. Não sabemos o que Deus pode operar secretamente no coração do deficiente, mas ele sabe. Se ele faz isso a bebês recém-nascidos, certamente não é a idade ou maturidade mental que o impede. Ele fez da sua Palavra o meio de edificar e santificar a sua Igreja, e não dispôs nenhuma exceção para os deficientes.

Além disso, lembremo-nos de que o Espírito falou a pessoas de várias nações por meio do dom de línguas dos apóstolos. Uma das maiores bênçãos do evangelho é o seu poder de quebrar as barreiras de comunicação. E devemos crer que o mesmo Deus que proclama o seu evangelho a todos os povos também o faz na linguagem do deficiente. Nós humanos não sabemos como nos comunicar de forma que os deficientes mentais entendam, mas Deus, em seu secreto conselho, sabe. E ele santificará os deficientes de seu pacto pela sua Palavra pregada, e a imprimirá em seus corações, porque foi para isso que ele os chamou. Deficientes não entendem a Bíblia? Diante de Deus, eles entendem tanto quanto você.

5. Uma última ilustração.

Quando os filisteus invadiram Israel e derrotaram o rei Saul, um neto dele chamado Mefibosete caiu das mãos de sua ama quando ainda era criança e ficou permanentemente aleijado. Quem herdou o trono, após várias complicações civis, foi Davi. O que poderiam esperar os descendentes de Saul que ainda restavam, senão a morte? No entanto, Mefibosete foi acolhido por Davi tão amorosamente que passou a comer na mesa do rei pelo resto da vida. Mefibosete bem sabia que sua deficiência seria um peso para o rei, sem falar na indignidade de sua ascendência. Mas, por causa da aliança de amizade que Davi fez com Jônatas, o pai de Mefibosete, cumpriu ele sua palavra de abençoar seu filho.

Essa história bem ilustra com que carinho e consideração devem ser tratados os deficientes na Igreja. Essa lição é um reflexo do próprio evangelho. Somos nós os indignos por ascendência, filhos de Adão, filhos do diabo, filhos da ira. Pra ficar pior, somos nós os mancos, que não podemos dar um só passo para pedir clemência ao grande rei. Mas esse tão bondoso rei estabeleceu aliança eterna por meio de Jesus Cristo, o sumossacerdote que levou sobre si nossas enfermidades (Is 53), que padeceu todas as fraquezas humanas em sua carne (Hb 5). E, por intermédio dessa aliança, somos nós conduzidos à presença do Rei dos reis e convidados ao banquete celestial por toda a eternidade. Se você ainda tem dificuldades para aceitar os deficientes em sua família, se eles mais parecem um peso incômodo do que um presente de Deus; se você teme se envolver com os deficientes de sua igreja, afirmo que é o poder desse evangelho que iluminará o seu caminho. Pela multiforme sabedoria de Deus revelada no evangelho, você pode imitá-lo e tratar os deficientes como irmãos em Cristo e partícipes do pacto da graça.


André Duarte

domingo, 2 de fevereiro de 2014

PRC 10 – O dia do culto


       Enfim, chegamos ao final da série sobre o Princípio Regulador de Culto. Já expomos todos os elementos de culto e os princípios que devem norteá-los. Por fim, falta apenas falar sobre o dia especial em que o culto deve tomar parte, que é o tema deste post.
           
Devo explicar por que desisti de fazer um post sobre os sacramentos. Ocorre que eu já fiz um, há vários meses, durante uma curta série sobre eclesiologia. Fiquei muito feliz de conferi-lo e perceber que eu não mudei em minha posição sobre o que já expus nele. Ainda que eu tenha me tornado pedobatista nesse período, isso em nada modificaria o que expressei nesse post relativamente antigo. O que eu poderia acrescentar, para torná-lo relevante na série de PRC, não é longo o suficiente para receber um post inteiro, a saber: que os sacramentos devem ser oferecidos e recebidos com reverência e temor, administrados por ministros ordenados, e somente no contexto do culto público. E enfatizaria que o vinho deve ser realmente vinho, não suco de uva. Porém, acredito que os leitores deduziriam essas coisas em face do que já foi exposto e não quero tornar-me redundante ou repetitivo. Sendo assim, prossigo para o assunto que ficou pendente, que é o dia sagrado.
           
Não é por conveniência que a Igreja cultua o Senhor justa e necessariamente em todo domingo. Tudo começou quando Deus, no primeiro versículo do capítulo 2 de Gênesis, declarou que o sétimo dia, no qual ele cessou sua criação, era dia santo. Com isso, Deus decretou que tal dia, em que ele descansou de seu trabalho de criar, deveria basear também o labor humano na criação, que é análogo ao trabalho que Deus fez. Por essa razão, ao revelar suas santas leis a Moisés, disse Deus que os homens deveriam trabalhar por seis dias e descansar no sétimo, porquanto ele mesmo descansou no princípio de tudo. E a isso Deus “coagiu” o homem quando demonstrou a dádiva do maná: que, no sexto dia, os homens recolhessem mais para manter até o sétimo, visto que, no sétimo, não haveria maná. Assim, Deus demonstrou a seriedade da rotina que ele estava ordenando: o dia de descanso era tão sagrado que o dia anterior deveria ser usado com diligência para que nenhuma necessidade de trabalho ficasse pendente para o sábado.

            Porém, quando chegamos ao Novo Testamento, vemos que em lugar algum existe a exortação para a observância do sábado. O fato de Jesus ter guardado o sábado é explicado pela sua sujeição à Lei de Moisés necessária para a perfeição do seu sacrifício. Em lugar disso, vemos repetidas vezes que a Igreja passou a considerar o domingo como dia santo de culto, e não o sábado. No dia em que Jesus ressuscitou, ele encontrou seus discípulos e repartiu entre eles o pão, iniciando a primeira reunião de Igreja dominical. E em Atos, lemos várias vezes que a Igreja se reunia “no primeiro dia da semana”. Evidência disso encontra-se também em 1Coríntios, em que Paulo pede que os irmãos coletem a oferta para Jerusalém nesse dia. Por que no primeiro dia da semana? Provavelmente, porque era esse o dia ordinário da reunião da Igreja em culto solene. A sacralidade desse dia também é demonstrada no princípio de Apocalipse, no qual João diz que teve suas visões “no dia do Senhor”, termo que, segundo a linguagem dos pais apostólicos, significava o domingo.

            É evidente que a ressurreição de Jesus mudou tudo. Em lugar do sábado ser o dia santo, passou a ser o domingo. No entanto, temos de tratar de algumas pontas soltas. Primeiro: como sabemos que o sétimo dia foi abolido para ser instituído o primeiro, e não que ambos coexistem? A questão é legítima, visto que o princípio do pactualismo nos instrui que não podemos descartar uma lei de Deus do Antigo Testamento somente por sua ausência no Novo; só agimos assim se o Novo expressamente ordenar a interrupção, a descontinuidade. E, de fato, isso existe. Lemos em Colossenses 2 que Paulo, referindo-se às leis cerimoniais, diz que foram “encravadas na cruz” e que não devem de forma alguma servir de cárceres da consciência. Dentre essas leis, ele cita expressamente o sábado. E, por fim, explica: essas coisas eram sombras da realidade que viria em Cristo. Embora seja difícil determinar a natureza sincrética e multiforme da heresia dos colossenses, é evidente que alguns elementos do judaísmo estavam incluídos (circuncisão, sábados, festas de lua nova). Temos explicitamente aqui a abolição do sábado. Entretanto, certamente que a abolição refere-se ao sétimo dia da semana, e não à guarda do sábado por completo. Do contrário, teríamos a eliminação de uma lei moral, ordenada dos Dez Mandamentos, o que obscureceria a perfeição da Lei de Deus e tornaria a Bíblia incoerente. O que mudou foi apenas o dia: antes, o sétimo; hoje, o domingo. E podemos aplicar a lei moral de santificar o sábado ao domingo, como lemos que a Igreja fez no tempo dos apóstolos e por toda a sua história.

            Continua a ordem de santificar um dia e trabalhar seis; descontinua qual é esse dia. Por quê? Será que faz diferença ser no domingo, e não no sábado? Hebreus 4 junta as peças. Lá, o autor discorre uma verdadeira “teologia do descanso”. Seria demorado demais expor o texto inteiro, então partirei logo para as conclusões. O autor estabelece a analogia do descanso sabático com a vida eterna e os dias de labor com as obras de justiça que praticamos. Diz ele que, em Cristo, temos o descanso sabático, porque “quem nele descansa, descansa das suas obras”. A rotina semanal que o Senhor estabeleceu é uma imagem da própria jornada cristã rumo à salvação. Fica claro, portanto, por que o descanso no sétimo dia é uma lei cerimonial que deve ser colocada lado a lado com as demais em sua importância e instrução: que, sob ela, contemplamos o Cristo vindouro somente até que ele venha. Os sacrifícios e as abluções serviram de tutores para as consciências, para que  os israelitas compreendessem a natureza de seus pecados e ansiassem pelo Salvador, que efetuaria perdão e purificação. Da mesma forma, o descanso no sétimo dia ilustrava o jugo das consciências cativas à justificação por obras: que passamos longo tempo labutando para então recebermos o descanso. Em outras palavras: que deveriam se submeter às obras da lei até que viesse o Messias; não porque alcançariam salvação por elas, mas simplesmente porque elas o antecediam temporalmente, porque elas apontavam para o futuro. O descanso no sétimo dia é coerente com a justiça da Lei que diz “quem praticar essas leis (seis dias de trabalho) viverá por elas (sétimo dia de descanso).

            Porém, o autor de Hebreus nos diz que Jesus Cristo já conquistou o descanso para nós, e nele podemos enfim descansar das nossas obras. Sua ressurreição no primeiro dia da semana não foi incidental. Pois como alguém poderia receber a paz da salvação, senão porque o nosso eterno sumossacerdote triunfou sobre a morte no dia em que saiu do túmulo? Não devemos nos apegar ao sétimo dia da semana pelo fato de que Deus o santificou na própria criação. Pois, em Cristo, Deus não estava apenas cumprindo a Lei, mas também restaurando a própria criação. “Nele, somos novas criaturas; eis que tudo se fez novo”. “Porque Deus reconciliou consigo todas as coisas em Cristo, tanto as que estão no céu como na terra”. E o que Jesus conquistou para nós é ainda superior ao que Adão perdeu. Se a criação de Deus em Gênesis 1, sem pecado ou erro algum, já era boa, a recriação que ele fez em Jesus Cristo, sua Palavra encarnada, é ainda melhor. O domingo é dia santo porque Jesus ressuscitou nele pelo poder de Deus o Pai. E assim nossas consciências foram libertas do jugo da justiça da Lei, pois o que era sombra e mistério tornou-se realidade clara. Eis o resumo do significado da mudança do sábado para o domingo: antes, trabalhávamos em obras para poder alcançar o descanso da salvação (conforme nossas consciências exigiam, embora isso fosse impossível); agora, recebemos o descanso da salvação no primeiro dia da semana para então trabalharmos em obras de justiça. Isso não lhe soa familiar? Não é exatamente o que o apóstolo Paulo diz na sua famosa passagem: “Pois pela graça sois salvos... não por obras, para que ninguém se glorie... pois somos criados em Jesus Cristo para boas obras”?

            As dúvidas sobre a questão do sábado são recorrentes no meio evangélico. Espero ter esclarecido, ou pelo menos feito uma introdução sintética a esse complexo tópico. Há muito o que dizer e pouco espaço, então sugiro que os leitores procurem material melhor. Apenas quero demonstrar o seguinte: eliminar o mandamento de ter um dia de descanso é antinomia; fazer do sétimo dia o dia de descanso é o mesmo que afirmar que o Messias ainda não veio. Mas, descansar e cultuar no domingo é a atitude de culto coerente com a obra de Cristo. Já ouvi certa vez que é necessário ter um dia de descanso, mas que nós podemos escolher qualquer um que quisermos. Isso seria afirmar que o dia em que Jesus ressuscitou é como qualquer outro e soa blasfemo.

            Segue-se, por conclusão, que ir à Igreja no domingo não é opcional. É um mandamento do Senhor. Por toda a Escritura, Deus chama o seu povo a adorá-lo em culto público, e deixar de atender a esse chamado é pecado (com exceção de emergências, é claro). Se alguém deixa de prestar culto com o povo de Deus no domingo, está por definição idolatrando aquilo que foi preferido: a festa de aniversário, a preguiça, o Faustão, o futebol... Além disso, concluímos também que, pelo princípio da sola scriptura, o domingo é o único dia da semana obrigatório para o culto. É comum que as igrejas façam cultos solenes em outros dias da semana. Muitos puritanos execram isso totalmente, dizendo que é somente no domingo que deve haver culto. Da minha parte, entendo que os outros dias, em casos excepcionais, podem ser usados para culto público, desde que sejam observadas duas condições: que o descanso não esteja incluído, pois violaria o mandamento “trabalharás seis dias”; e que os ministros não atem as consciências dos membros da Igreja com isso. Cultuar no domingo é obrigatório; cultuar em qualquer outro dia que os pastores queiram não é. Isso seria legalismo, acrescentar tradições humanas e elevá-las ao nível das leis de Deus. Assim, jamais devem os ministros repreender os membros que não comparecem a cultos de sábado, segunda-feira e assim por diante. Outro erro que pode acontecer é a realização de cultos durante a semana que mesclem elementos exclusivos de culto público com aqueles de culto particular. Por exemplo: na hora da música, as pessoas podem pular, dançar e brincar, porque “não é o culto de domingo, é apenas outra reunião”; mas, na hora da pregação, deve-se prestar total reverência e ausência de conversas porque “estamos em um culto sério”. Isso mostra uma teologia de culto confusa e prejudica as consciências dos membros.

            Como o domingo pode ser um deleite? Na nossa cultura, pensamos que o fim de semana se dá assim: da sexta-feira à noite até o sábado de madrugada, é tempo de farra e diversão, e o domingo é o dia da preguiça e da lamúria pela segunda-feira iminente. Como cristãos sérios, devemos ser contra-culturais e afirmar que o domingo é o dia da maior alegria da semana, por ser o dia santo para lembrarmos da ressurreição do nosso Senhor. E que sexta-feira e sábado são dias de trabalho sim. Ainda que, naturalmente, tenhamos mais tempo de lazer do que nos outros, o que restar de trabalho deve ser feito nesses dias. Se alguém disser que não consegue descansar no domingo porque tem muitas coisas pra fazer, respondo o seguinte: quem falhou em descansar no domingo antes falhou em trabalhar direito nos outros seis dias. Desde que entendi a doutrina do domingo corretamente, tive de mudar a minha rotina: em vez de usar o sábado só pra diversão, passei a fazer os trabalhos domésticos nesse dia, em vez de deixar para o domingo. E como passei a aproveitar melhor os benefícios desse dia!

Pense na seguinte situação: todos aqueles que nasceram em famílias evangélicas que não tinham a tradição de santificar o domingo passaram várias vezes pelo desconforto de esperar a mãe fazer o almoço depois do culto de manhã. Então, ao meio-dia, ela começava a colocar a panela no forno. E, lá pras 14:30, o almoço era servido. O que a família fazia nesse intervalo? Apenas gemia de fome. O interessante é que a preparação do alimento é um exemplo corriqueiro no Antigo Testamento para se falar do descanso sabático: “Nem acendam fogo nas suas casas nesse dia”. O correto a fazer é preparar o almoço do domingo no sábado à noite e depois esquentar no micro-ondas (sim, nesta época privilegiada em que temos acesso ao micro-ondas!). Sobra muito mais tempo para a família descansar e cultuar o Senhor de maneiras diversas. Esse é um exemplo bem fácil de visualizar, e o mesmo pode ser dito de várias outras coisas que nos atrapalhariam no domingo. Que – para usar outro exemplo – os estudantes esqueçam o vestibular, a monografia ou a apostila de concurso no domingo! Repousem, preocupem-se com o alimento espiritual, não faltem nos cultos. “O Senhor proverá”. Nos outros seis dias, estudem bastante. Você, que se diz tão atarefado que não consegue tempo pra ler a Bíblia; ainda que eu ache isso uma desculpa esfarrapada, no domingo não há desculpa: passe a tarde toda lendo a Bíblia, orando e adorando. Domingo é para isso.

Tudo o que foi dito nesta série sobre o PRC deve ser aplicado no culto de domingo. É o momento mais importante da semana, o único momento em que recebemos uma centelha daquilo que irá durar para sempre: adoração e comunhão com Deus e o povo santo.

The end.

André Duarte

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

PRC 9 – Ofertas


           Este é um dos últimos posts da série. Depois dele, vou fazer só mais dois: um sobre os sacramentos e outro sobre o dia de domingo.

O assunto das ofertas é rápido e tranquilo. As controvérsias teológicas são relativamente fáceis de resolver. O tema do post é sobre o elemento do culto público que consiste em dar ofertas em dinheiro para a Igreja, com vistas à aplicação justa e ao crescimento do reino de Deus. Pela pouca atenção que o Novo Testamento dá ao assunto, muitas igrejas nem mesmo consideram que o ato de ofertar é obrigatório no culto público. Quando os apóstolos falam sobre ofertar, é quase sempre para o auxílio emergencial em uma situação específica. Por exemplo, temos 1Coríntios 16, em que Paulo fala para a Igreja fazer as doações no domingo. Como foi um caso extraordinário por causa da fome em Jerusalém, não fica tão claro que as ofertas são obrigatórias a cada domingo. Mas, pelo menos podemos saber que é algo permitido recolher ofertas no culto público. O Antigo Testamento fala bastante sobre o ato de dar ofertas, mas os aspectos de descontinuidade com o Novo são tantos que é difícil aplicar literalmente as ordens do Antigo.

Por exemplo, no Antigo Testamento, as ofertas eram em alimento para o sustento dos pobres e dos levitas. Os levitas cuidavam do tabernáculo e, depois, do templo, e apenas a eles isso era permitido. Não possuíam propriedades como as outras tribos. Viviam das ofertas. Os dízimos eram dados a eles e aos outros pobres – viúvas, órfãos e estrangeiros. A ideia é a da provisão para quem não pode ganhar sustento por conta própria. Lemos em Malaquias 3 que Deus ordena que seja dado todo o dízimo, pois, do contrário, os pobres ficariam sem esperança. Na Lei, especialmente em Deuteronômio, aprendemos que havia três dízimos: o dízimo da produção anual, o dízimo para a comemoração das principais festas como a Páscoa, e o dízimo do que havia sido estocado por três anos. Além disso, havia algumas outras ocasiões de ofertas, como a dos primeiros frutos da terra.

Essa realidade é muito diferente daquilo que encontramos no Novo Testamento. Lemos em Atos 2 e 4 que os membros da Igreja começaram a espontaneamente ajudar uns aos outros com seus bens e dinheiro. Enfatizo o “espontaneamente” para que ninguém com inclinações esquerdistas pensem que o “ter tudo em comum” era uma regra para a Igreja. Em outras passagens, vemos claramente que havia ricos e pobres e que havia propriedade privada. O princípio da solidariedade aqui é que ninguém na Igreja deveria ficar desamparado. Ao contrário do que vemos no Antigo Testamento, a prática de doação envolvia dinheiro, e não simplesmente alimentos (por causa do tipo de sociedade mais centrada no mercado, e não tanto em terras). Depois, em Atos 6, Lucas registra a instituição do diaconato para a administração desses bens, devido ao descuido que estava começando a acontecer com viúvas de judeus helenistas. E, por todo o Novo Testamento, lemos sobre essa prática constante de se dar dinheiro a oficiais da Igreja para que ajudassem os membros em necessidade. Esse é um aspecto de continuidade: os pobres tanto do Antigo como do Novo testamentos deveriam receber ajuda dos irmãos mais abastados.

Com o passar do tempo, foi necessário esclarecer que a ajuda aos pobres deveria obedecer a certos critérios. Por exemplo, em 2Tessalonicenses, Paulo diz que “quem não quiser trabalhar também não coma”. O dinheiro da Igreja não deve ser usado para bancar indolentes e preguiçosos. Em 1Timóteo 5, Paulo diz que as viúvas devem receber ajuda dos seus filhos em primeiro lugar. Além disso, somente viúvas mais idosas (idade de 60 anos) podiam ser inscritas no rol de sustentadas pela Igreja; as mais novas devem se casar e ter filhos, para que as primeiras fossem bem atendidas. O versículo 16 dá a conclusão: “Se alguma crente tem viúvas em sua família, socorra-as, e não fique sobrecarregada a Igreja, para que esta possa socorrer as que são verdadeiramente viúvas”. Existe, portanto, uma ordem de prioridade na ajuda que deve ser prestada pela Igreja. Os administradores do dinheiro da Igreja, que resolverão e aplicarão essas regras, são os diáconos, os quais devem também preencher os requisitos de 1Timóteo 3.8-10.

Até aqui, vimos que o dinheiro dado à Igreja deve ser dado à assistência regulada dos pobres que não têm outra possibilidade de se sustentar. Outra aplicação do dinheiro da Igreja é para o salário de pastores e missionários. Em 1Timóteo 5.17, 18, Paulo diz que os presbíteros docentes são “dignos de duplos honorários”. Alguns interpretam esse termo como se o significado fosse apenas respeito e reverência, mas o versículo 18 deixa claro que trata-se do sustento para o trabalho. Os presbíteros docentes devem ter salário pago pela Igreja para que possam se dedicar integralmente ao ministério da pregação. Também, o próprio Paulo, sendo missionário, deixa claro em 1Coríntios 9 que, como tal, tem o direito de ser pago pela Igreja. Embora ele voluntariamente tenha procurado se sustentar com trabalho próprio, o princípio que ele estabelece é que missionários, plantadores de igrejas, devem receber ajuda financeira da Igreja. Esse salário aparenta ser uma continuidade sutil do sustento dado aos levitas. Assim pode ser considerado, desde que se entenda que há muito mais descontinuidade do que continuidade entre os levitas e os presbíteros em diversos aspectos.

Essas são, portanto, as funções do dinheiro dado à Igreja: sustento de missionários, salário do pastor e socorro aos necessitados da Igreja. Naturalmente, a Igreja pode e deve também ajudar necessitados fora da Igreja, desde que os da família da fé estejam sendo atendidos em primeiro lugar. Agora, e quanto à quantidade? E o tal do dízimo? Novamente, temos o problema da descontinuidade. O dízimo não é ensinado no Novo Testamento para os cristãos, e a descontinuidade entre os testamentos na natureza das ofertas nos faz compreender que essa fração não é obrigatória. A regra está em 2Coríntios 8 e 9. Paulo dá duas normas: que as ofertas devem ser segundo as posses de cada um e que devem ser dadas com alegria e liberalidade. A primeira norma diz respeito à proporcionalidade: quem tem mais deve dar mais e quem tem menos deve dar menos, para que ninguém fique sobrecarregado. Como a proporção de 10% era a norma no Antigo Testamento, muitos teólogos entendem que essa medida é boa também no Novo. Isso é verdade, mas até certo ponto. Devemos lembrar que, quando se trata de dinheiro, e não de comida, algumas coisas mudam. Um pobre que recebe 500 reais e dá 50 sente muito mais falta dessa porção do que um rico que ganha 20.000 e dá 2.000. É muito estranho que igrejas não se importem com isso e ordenem o dízimo como se fosse uma medida obrigatória e absoluta, especialmente quando não cumprem a obrigação de dar assistência aos pobres da Igreja. Então, é necessário ter cautela quanto a essa questão da proporção.

Com relação à segunda norma, o que Paulo nos diz é que as ofertas devem ser dadas com o propósito correto no coração, com desprendimento e sincero desejo de prestar socorro. Isto é, as ofertas são atos de amor aos pobres e ao Reino de Deus. Se alguém dá ofertas por motivos legalistas, ou pensando em benefício próprio, como se pudesse atrair o favor de Deus com isso e prosperar, então o motivo é contrário ao que Paulo ordena. É um pecado e um desacato ao próprio culto público. Esse é apenas um dos muitos motivos por que a teologia da prosperidade, ou mesmo uma pequena fração dela que, de qualquer maneira, instigue os congregantes a dar ofertas para receber de volta, é uma heresia que deve ser exterminada.


Por fim, para o bom testemunho público e para que a adoração simples seja protegida, não é correto que o ato de dar ofertas ocupe preeminência no culto público. Muitas igrejas neopentecostais fazem desse elemento praticamente o centro do culto, o que é uma desonra ao ministério da Palavra e dos sacramentos. Que seja uma prática não negligenciada, mas exercida com discrição e posta à periferia.

André Duarte

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

PRC 8 – Declaração de fé


            Estamos chegando ao final da série sobre o Princípio Regulador de Culto, na qual tenho procurado expor quais são as formas pelas quais o povo de Deus deve adorá-lo no domingo e como devem elas ser feitas. No próximo post, falarei um pouco sobre ofertas. Aqui, quero tratar da questão da declaração pública do que a Igreja crê. Isso envolve testemunho para os descrentes, manutenção da sã doutrina para os crentes e fórmulas sistemáticas em forma de credos.
           
            1. Textos de prova.

Esse assunto é um tanto difícil, porque há pouca evidência bíblica explícita para o uso de declarações confessionais. Ainda assim, quero colocar alguns textos bíblicos que falam sobre o quanto elas são importantes. Em primeiro lugar, temos diversas ordens dos salmos para fazermos proclamações em voz alta no culto público. “Na presença dos fiéis, proclamarei o teu nome” (Sl 52.9); “Falarei dos teus feitos poderosos, ó Soberano Senhor; proclamarei a tua justiça, unicamente a tua justiça” (Sl 71.16). Um particularmente interessante é o do salmo 22, messiânico: “Proclamarei o teu nome a meus irmãos; na assembleia te louvarei”. Curiosamente, não é apenas Davi que diz isso, mas também Jesus Cristo proclama no culto a grandeza de Deus conosco, conforme Hebreus 2.11, 12. O fato de que os salmos falam sobre a declaração da grandeza de Deus aos fiéis, de maneira não necessariamente vinculada ao cântico e à leitura da Bíblia, e ainda no contexto do culto público (a “assembleia”), já nos indica que a confissão de fé é parte do culto dominical. Perceba também que a proclamação da qual Davi fala não pode ser também identificada com a pregação, pois ele era rei, e não levita. Essa proclamação, portanto, deve pertencer ao povo comum.
           
Essa realidade não é apenas declarada no Antigo Testamento. As chamadas epístolas pastorais também nos dão indícios de que a Igreja neotestamentária também usava fórmulas para expressar a doutrina cristã claramente. Diversas vezes, Paulo usa a expressão “Esta afirmação é digna de aceitação”, e refere-se várias vezes à apreensão da “sã doutrina”. E em certas passagens, ele escreve uma declaração dessa sã doutrina de maneira poética e sistemática. Por exemplo: “Não há dúvida de que é grande o mistério da piedade: Deus foi manifestado em corpo, justificado no Espírito, visto pelos anjos, pregado entre as nações, crido no mundo, recebido na glória” (1Tm 3.16). A ênfase em que se ensine e proclame a doutrina tal qual fora passada (2Tm 3.10) sugere que a Igreja já era acostumada com frases resumidas da fé cristã. Nessa mesma fase de transição da Igreja apostólica para pós-apostólica, vemos também os ensinos concisos e assertivos de João, em suas epístolas, especialmente no que se refere à confissão. Veja a frequência, na primeira epístola, dos termos “Aquele que diz X é isso; aquele que diz Y é aquilo” (1Jo 1.6, 8, 10; 2.4, 22, 23; 4.3, 4, 20). Certamente, João desejou que, após sua morte, a Igreja tivesse com clareza os tópicos fundamentais da fé cristã a fim de que, pela confissão, fossem distinguidos os verdadeiros crentes dos demais. Sei que essas passagens, por si sós, provam pouco, mas creio que elas estão em harmonia com outras passagens e argumentos que estou usando, como os salmos supracitados.
           
A declaração de fé é enfatizada diversas vezes na Escritura também no contexto de evangelismo. São bem conhecidas as afirmações de Jesus: “Todo aquele que me confessa diante dos homens, eu o confessarei diante do Pai”. Jesus estava falando, evidentemente, do culto particular, na vida ordinária dos crentes, em qualquer circunstância em que fosse necessário confessá-lo como Senhor. Porém, a Bíblia também deixa claro que o culto público é também ocasião de evangelismo para descrentes. Que os descrentes deveriam ouvir a doutrina de Deus na Igreja, na condição de visitantes, para se converterem, é afirmado claramente em 1Coríntios 14.20-25. Assim, a Igreja deve proclamar a sã doutrina aos descrentes também no culto dominical.
           
Por fim, temos os exemplos históricos desde o segundo século. O Credo Apostólico e o Credo Niceno estão entre os mais famosos e antigos da Igreja. Devido à multiplicação de heresias, foi necessário formular credos mais amplos e catecismos. As igrejas reformadas, por exemplo, têm geralmente adotado a Confissão Belga, a Confissão de Heidelberg e a Confissão de Westminster com o Catecismo Maior e o Breve Catecismo.
           
O ponto a que esses textos nos levam é que a Igreja deve, conjuntamente (sem perder a ordem e a reverência no culto), declarar em alta voz a doutrina da fé cristã nos pontos claros e fundamentais para a edificação dos fiéis e a exposição da verdade aos visitantes.

            2. Os benefícios da confissão de fé.

            Quase todas as igrejas evangélicas atuais abandonaram o antigo costume de adotar confissões de fé. Em outros casos, elas adotam, mas nunca a tornam pública para a congregação. Ou, ainda, formulam uma confissão tão rasa que não ajuda a esclarecer quase nada. O argumento mais comum contra a adoção de uma confissão de fé é a “sola scriptura”. Dizem que uma igreja deve ter somente a Bíblia como regra, e não uma confissão inventada por homens. O argumento é falacioso e desprezível, por mais bem intencionado que esteja. Uma igreja confessional saudável deixará claro para os membros que a confissão de fé não tem o mesmo nível de autoridade que a Bíblia, e sim que ela é uma exposição resumida, clarificada e sistemática do que essa igreja crê que a Bíblia ensina. A Bíblia tem pontos mais claros do que outros, mais urgentes do que outros, mais polêmicos do que outros e mais fundamentais para a sã doutrina do que outros. As confissões de fé buscam, então, tornar essas coisas compreensíveis e simplificadas para o público. Uma Igreja que diz que adota somente a Bíblia e nenhuma confissão de fé está se enganando. Pois, se as confissões de fé são interpretações da Bíblia que cremos ser fiéis, então elas não diferem substancialmente do que aquilo em que a congregação de qualquer igreja assente quando ouve um sermão, quando canta um louvor ou simplesmente quando participa do culto de qualquer forma. Nenhuma igreja sobrevive sem apoiar-se em certa interpretação da Bíblia e, na realidade, nenhuma atividade humana é possível sem a mediação da interpretação do mundo. Portanto, o que igrejas confessionais fazem é atribuir unidade, consistência e clareza na interpretação. As não-confessionais, por outro lado, fazem da interpretação algo múltiplo, fluido, sem definição e sem publicidade. Eis aí o ambiente propício para o afloramento de heresias.
           
Confissões de fé trazem vários outros benefícios. Elas mostram aos crentes visitantes exatamente que tipo de igreja está ali e o que ele pode esperar dela caso deseje tornar-se membro. Elas limitam o poder dos pastores, de forma que eles não podem pregar nada nem exercer tal autoridade que a confissão adotada não autorize. Elas tornam os pontos fundamentais da fé claros e explícitos para que nenhum membro da Igreja consiga disseminar heresias. Elas dão aos membros sensação de consistência, coerência e, portanto, segurança. Elas também mostram os critérios usados para a disciplina eclesiástica, para a acepção de novos membros e para a doutrina que se permite ser ensinada. Também elas anunciam aos descrentes, de maneira simples, as coisas em que a Igreja crê, e que todos os membros podem proclamar como um só corpo para o mundo. Elas identificam a igreja ali presente com a cristandade histórica, mostrando ao povo de Deus que ela está inserida em um contexto maior, no qual Deus trabalha por séculos. Nesse sentido, elas unem os cristãos presentes aos outros tantos que os precederam.

            Basta comparar igrejas confessionais com as não confessionais e qualquer um admitirá qual dos tipos possui maior unidade na fé e na comunhão. Fui de uma igreja não confessional por muitos anos e congrego hoje em uma confessional histórica, e dá pra perceber que grande diferença faz. Essa igreja não confessional, na verdade, até possui uma confissão de fé. Mas, em todos os meus 15 anos como membro, somente duas vezes ela foi lida publicamente (e eu sempre fui membro assíduo). E ela é tão curta que pode ser lida inteira em menos de um minuto. Ela não explica praticamente nada. Em certo lugar, ela diz “Cremos na ordenança da Ceia do Senhor”. E só. Não resolve nada sobre transubstanciação, consubstanciação, simbolismo, quem pode ministrar, quem pode participar, para quê serve, se pode pizza no lugar do pão, etc. O único ponto específico e que não causa ambiguidade é o que afirma o continuísmo dos dons, justamente o que consideramos errado. Não há absolutamente nada sobre soteriologia. Teoricamente, uma pessoa pode pregar o calvinismo e o arminianismo. Porém, na prática, existe um consenso entre os pastores sobre uma série de coisas que nós membros nem ficávamos sabendo e pelas quais éramos repreendidos mesmo assim. Unidade nenhuma pode subsistir nesse tipo de igreja.

            Outra ilustração, pertinente ao que qualquer um no Brasil pode observar, é o contraste entre igrejas batistas e presbiterianas. No geral, apesar das exceções, as igrejas presbiterianas preservaram até hoje a sã doutrina muito melhor do que as batistas. Há vários motivos por que isso aconteceu, mas um deles é o seguinte: o povo das igrejas presbiterianas (no geral) está repetindo a mesma confissão de fé domingo após domingo, enquanto o das batistas não. A falta de consistência das igrejas batistas sobre sua identidade deu entrada aos espíritos liberal, carismático e empresarial. Não há dúvida de que, após uma ou duas gerações, os crentes que deixam de lado sua confissão de fé histórica acabam esquecendo quem eles são.


            André Duarte

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

PRC 7 – Leitura pública e pregação da Bíblia



                No culto público bíblico, vemos frequentemente as ordens para a leitura pública das Escrituras e o ensino a respeito dela. O ensino bíblico, a pregação da Palavra, é realmente o centro do culto cristão, o mais importante momento da adoração. Afinal, trata-se da própria Palavra de Deus proclamada e aplicada, a qual penetra até o íntimo do ser (Hb 4.12). Leitura e pregação são coisas distintas, mas resolvi tratar de ambas no mesmo post para não ficar desnecessariamente longo e repetitivo.

            A leitura da Bíblia em voz alta é ordenada desde Moisés até o Apocalipse. Em Dt 31, Deus ordenou que, no ano do cancelamento das dívidas, a Lei fosse lida em voz alta pelos levitas para o povo “para que ouçam e aprendam a temer o Senhor, o seu Deus, e sigam fielmente todas as palavras desta lei”. Ao entrarem em Canaã, Josué leu para os israelitas toda a Lei de Moisés, conforme havia sido ordenado (Js 8). A leitura pública regular da Lei, juntamente ao ensino dos levitas, era necessária para manter o povo sempre consciente da natureza de sua fé e dos mandamentos de Deus. Em contrapartida, quando o povo esquecia da Lei, o resultado era a apostasia. Isso fica claro quando os servos do rei Josias encontram o livro da Lei no templo abandonado. O povo estava no auge da rebeldia contra Deus porque as Escrituras estavam completamente esquecidas, jogadas em um canto qualquer. Mais ou menos como hoje.

            O ensino da Lei, que consiste no esclarecimento da Lei lida, era também dever dos levitas (Lv 10.11; Ml 2.7). E, mesmo que as Escrituras não houvessem sido totalmente esquecidas, a corrupção religiosa do povo era frequentemente acompanhada de um ensino parcial e distorcido da Lei. Veja que atuais as reclamações dos profetas: “os intérpretes da Lei não me conheciam” (Jr 2.8); “como podem dizer ‘somos sábios, pois temos a Lei do Senhor’ quando a pena mentirosa dos escribas a transformou em mentira?” (Jr 8.8); “profetas e sacerdotes igualmente praticam o engano” (Jr 6.13); “Seus sacerdotes cometem violência contra a minha lei e profanam minhas ofertas sagradas; não fazem distinção entre o sagrado e o comum; ensinam que não existe nenhuma diferença entre o puro e o impuro; e fecham os olhos quanto à guarda dos meus sábados, de maneira que sou desonrado no meio deles” (Ez 22.26); “Meu povo foi destruído por falta de conhecimento. Uma vez que vocês rejeitaram o conhecimento, eu também os rejeito como meus sacerdotes; uma vez que vocês ignoraram a lei do seu Deus, eu também ignorarei seus filhos” (Os 4.6); “Seus profetas são irresponsáveis, são homens traiçoeiros. Seus sacerdotes profanam o santuário e fazem violência à lei” (Sf 3.4); “porque vocês não seguem os meus caminhos, mas são parciais quando ensinam a lei” (Ml 2.9). Veja como Deus é zeloso pela correta pregação da sua Palavra. Não basta que o ensino seja derivado de um texto bíblico, o ensino precisa ser fiel e correto ao que o texto realmente ensina. E a história se repete sempre e permanece real hoje em dia: os cristãos vivem ignorantes a respeito da revelação de Deus, cheios de humanismo, subjetividade e vazio espiritual, ao mesmo tempo em que os pastores dão semanalmente sermões parcos, ocos, tortos e infiéis.

            O melhor exemplo de leitura e pregação da Bíblia que vemos no Antigo Testamento é o do escriba Esdras, um levita. Quando os muros de Jerusalém foram restaurados por Neemias, Esdras fez a leitura da Lei de Deus (Neemias 8.3) e os levitas “leram o Livro da Lei de Deus, interpretando-o e explicando-o, a fim de que o povo entendesse o que estava sendo lido” (8.8). Que era ocasião de culto público, embora excepcional, deduz-se dos versículos 9 e 10, que dizem que aquele dia era santo ao Senhor. Notar também que o versículo 6 diz que todo o povo ouvia com atenção a leitura, que demorou do amanhecer ao meio-dia. Esse é o modelo que as igrejas devem seguir: que o ministro ordenado faça a leitura das Escrituras e então exponha o seu significado para a congregação a fim de que todos entendam bem o texto. E, pelo princípio da reverência, é claro que os cristãos devem ouvir a leitura e a pregação com todo o amor, temor, fé e submissão (naturalmente, desde que a pregação seja mesmo fiel – não esqueçamos dos bereanos).

            No Novo Testamento, esse padrão continua, em ainda maior glória. Timóteo, o jovem pastor de Éfeso, recebe a seguinte instrução de Paulo: “dedique-se à leitura pública da Escritura, à exortação e ao ensino” (1Tm 4.13) e que “Pregue a palavra, esteja preparado a tempo e fora de tempo, repreenda, corrija, exorte com toda a paciência e doutrina” (2Tm 4.2). O que se aplica a Timóteo também se aplica aos outros presbíteros, os quais são ditos que trabalham “na pregação e no ensino” (1Tm 5.17) e que devem ser “aptos para ensinar” (3.2). E, no famoso versículo de 2Tm 3:16, Paulo fala sobre a total perfeição, inspiração, aplicabilidade e eficácia das Escrituras. Assim, o ofício da leitura e da pregação da Palavra permanece a cargo dos presbíteros da Igreja tal qual fora com os levitas para Israel.

            Mas a maior glória desse ensino hoje é devido à expansão das Escrituras, tanto na quantidade de textos como na clareza que eles transmitem sobre Cristo. É bem claro que, já na época dos apóstolos, os escritos neotestamentários eram considerados inspirados por Deus no mesmo nível do Antigo Testamento. Várias vezes, Paulo exige que sua carta seja lida em voz alta para a Igreja que a recebesse, sendo tal carta imbuída de autoridade canônica (Cl 4.16; 2Ts 3.14; cf. 1Co 14.37). Paulo também atribuiu ao evangelho de Lucas autoridade divina (1Tm 5.18). Pedro considerou as cartas de Paulo com “as demais Escrituras”, e atribuiu a ela sacralidade quanto ao modo de ser interpretada (2Pe 3.15, 16). E, por fim, o Apocalipse de João contém as advertências próprias de Escritura Sagrada: “Bem-aventurado aquele que lê e aquele que ouve as palavras desta profecia” (Ap 1.3); “Bem-aventurado o que guarda as palavras deste livro” (22.7); “Eu, Jesus, enviei o meu anjo para dar a vocês este testemunho concernente às igrejas” (22.16); “Declaro a todos os que ouvem as palavras da profecia deste livro: se alguém lhe acrescentar algo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. Se alguém retirar alguma palavra deste livro, Deus tirará dele a sua parte na árvore da vida e na cidade santa” (22.18, 19).

            O que vimos até aqui é o seguinte: a Bíblia deve ser lida, tanto o Antigo como o Novo testamentos, pelos presbíteros ordenados em voz alta para a congregação e, em seguida, explicada e esclarecida; e esta deve ouvir com alegria, atenção e temor.

            No que isso implica? Em primeiro lugar, que, na leitura e na pregação, os princípios da sola scriptura e da tota scriptura devem ser obedecidos. O pregador não deve ler outra coisa senão a Bíblia (em outro post, falarei sobre as confissões de fé), nem pregar de outra forma que não a exposição do texto bíblico. Logo, não é certo pregar, no culto público, sobre um livro cristão famoso. Algumas igrejas se fascinam tanto por algum best-seller (ex: Uma Vida com Propósitos) que resolvem fazer séries de pregações sobre ele, bem no culto do domingo. É de estranhar que tal fascínio não havia sido demonstrado em direção à própria Bíblia. Também é totalmente errado substituir a pregação da Palavra por testemunhos pessoais ou contos de histórias. Ao contrário, somente textos da Bíblia podem ser lidos e servir de base para a pregação, e somente a exposição dela deve ser aceita. Outro desvio comum é partir de um tema arbitrário para então buscar os textos bíblicos que falam sobre ele. Por exemplo: o pregador decidiu, do nada, que vai pregar sobre amor, então ele junta todos os textos da Bíblia sobre amor para embasar o que ele quer dizer. Embora isso não seja tão grave, é um artifício perigoso, porque é a vontade do pregador que dita o tema da mensagem, e não o texto bíblico. Além disso, fica difícil para a congregação discernir se os textos citados realmente fundamentam a conclusão do pregador. Por fim, o pregador pode muito facilmente evitar temas difíceis e jamais mencionar tal ou qual texto bíblico. Por essas razões, a forma certa e bíblica de expor as Escrituras é ler o texto e explicar para a congregação o que ele significa, como fez Esdras. Isso parece simples, mas não é, e logo ficará claro o porquê. Quanto à tota scriptura, é óbvio que o pregador não tem como falar da Bíblia inteira a cada sermão. Ele deve escolher textos, de preferência livros inteiros, para fazer séries de pregações, a fim de que a mensagem seja passada com o máximo de consistência. E deve ter o equilíbrio de pregar sobre textos de todas as partes da Bíblia conforme o passar das semanas permitir. Se ele deliberadamente nunca menciona Levítico ou prega todo dia sobre João 3.16 ou Romanos 12.2, está ignorando a relevância que toda a Escritura possui.

            Outro ponto: somente presbíteros ordenados devem ler e pregar sobre a Bíblia no culto público. Por que Paulo diz que os presbíteros devem ser aptos para ensinar? Por causa do ofício sagrado que eles possuem da exposição bíblica. Chamar leigos para subir ao púlpito e pregar, ou mesmo qualquer pessoa estudiosa que seja bem vista aos olhos da Igreja, é uma prática de igrejas modernas que não tem qualquer base bíblica. Sempre foram ministros ordenados que pregaram tanto antes como depois de Cristo. Isso porque o “ser apto para ensinar” não é fruto do Espírito (de todo crente), e sim um dom do Espírito (para apenas alguns crentes). É comum hoje em dia vermos igrejas que aceitam qualquer pessoa bem intencionada para ir dar um testemunho ou falar “o que Deus colocou em seu coração” sobre algum texto da Bíblia. Essa é a porta de entrada para total confusão doutrinária, pois pessoas leigas ainda discordam entre si a respeito de muitos pontos na doutrina. Se cada um expor sua opinião para a congregação, com a proteção do presbítero, sendo que as opiniões certamente vão discordar várias vezes, como o público conseguirá discernir o certo do errado? Esse tipo de democracia é bem bonita aos olhos do mundo, mas não possui sanção bíblica.

            Também, é sempre importante lembrar dos princípios ditos em todos os posts: primeiro, que a reverência deve marcar a leitura e a pregação. O presbítero não deve ficar fazendo piadas, não deve ficar tentando animar o público (visto como “plateia”), arrancar aplausos e gritos de “amém” etc. A congregação deve ouvir em silêncio e respeito, e o presbítero deve expor a Bíblia com todo o temor reverencial, sem perder a ousadia em proclamar a verdade. O princípio do verbo também deve ser observado: o presbítero deve usar palavras para pregar, não teatro, dança, fotos ou vídeos. Nem mesmo slides são inofensivos nesse sentido. Na simplicidade da pura palavra, o texto bíblico deve ser explicado.

            Algumas observações sobre a leitura: ela não precisa estar necessariamente vinculada à pregação. É bom que o presbítero leia em voz alta a Bíblia com a congregação, em uníssono, mesmo que não seja o texto sobre o qual a pregação será feita. Hoje, temos uma vantagem que o império romano não tinha: alfabetização geral. É bom que a congregação, hoje letrada, leia em voz alta a Bíblia junto ao presbítero. Isso é edificante e não fere nenhum princípio. Para isso, a versão da Bíblia deve ser a mesma, pra não resultar em confusão. Então, é necessário que os presbíteros decidam qual versão usar oficialmente. Segundo Augustus Nicodemos, a melhor versão é a Almeida Revista e Atualizada e, em segundo lugar, a NVI. Mais simplificada que a NVI já é exagero. Versões como NTLH deveriam ser queimadas como nos bons e velhos tempos.
           
Eu disse que a exposição da Palavra não é tão simples. A razão? Bem, quem lê a Bíblia sozinho em casa já percebeu que não é fácil pegar o sentido do texto imediatamente. O presbítero deve saber o sentido do texto com o máximo de certeza. Não deve seguir intuições, e sim pesquisar para não errar. O sentido de um texto é um só, e ele é objetivo. Não existe “isso significa X pra mim, mas pode significar Y pra você”. E, para saber o sentido de um texto, o presbítero deve conhecer bem toda a Bíblia e o sentido dela inteira. Além disso, ele precisa esclarecer o texto de tal forma que seja compreensível para o público enquanto não omite verdades teológicas complicadas. Deve também conhecer bem as opiniões erradas e hereges sobre o texto, para assim rechaçar os incansáveis falsos mestres. Eu esqueci de algo? Ah, sim: e ele deve pregar o evangelho em todo texto, fazendo a conexão pertinente entre o texto e Jesus. A pregação deve ser sempre cristocêntrica. Como disse Charles Spurgeon, se você não for pregar sobre Cristo, é melhor ficar em casa até descobrir algo melhor sobre o que pregar. Eu já fiz um post sobre pregação cristocêntrica, então não vou explorar muito isso. Mas, que o presbítero saiba que, conforme Jesus mesmo disse, toda a Escritura dá testemunho sobre ele, e ele é o centro da Bíblia. Se ele é o centro da Bíblia, naturalmente deve ele ser o centro da pregação.

            André Duarte

domingo, 8 de dezembro de 2013

PRC 6 – Música no louvor – Parte 2/2 - Sobre os músicos e o estilo musical


       O assunto da música precisou de dois posts, por causa de sua complexidade e dos abusos grandemente numerosos que têm sido cometidos. O primeiro post expôs o tipo de letra que Deus ordena que seja cantado. Agora, neste post, devo comentar sobre a aplicação dos princípios do PRC sobre a música propriamente e sobre a postura dos ministros e da congregação.

            1. Seja a composição musical feita com reverência e publicidade.
           
Enquanto a Bíblia nos instrui sobre o conteúdo das letras, ela não nos ensina nada claro sobre a melodia. Embora muitos salmos contenham, em seus subtítulos, indicações melódicas, o significado delas ficou perdido na história. Sendo assim, o povo de Deus tem liberdade quanto à melodia das composições para o culto público. Porém, ainda permanecem aplicáveis os princípios de reverência e publicidade para a música. Pela reverência, entende-se que a composição musical não pode instigar as emoções humanas a perderem o senso de solenidade. A esse ponto, a execução da melodia pelos instrumentos está vinculada, e trataremos disso no próximo ponto. Basta enfatizar aqui que a melodia deve ser regulada pela reverência devida ao Senhor, e não servir às voláteis emoções humanas. Pois é perceptível que a melodia, bem como o andamento e o ritmo, possui o potencial de instigar a sensação dos ouvintes às mais variadas emoções, no tipo e na intensidade. Nenhuma dessas emoções deve desviar-se da adoração racional ao Santo Deus, e a composição musical deve zelar por isso. Por publicidade, entende-se que as músicas devem ser facilmente executadas pela congregação. Pois não é a uma equipe especializada que as Escrituras ordenam cantar e tocar, mas sim a todo o povo de Deus em conjunto. Consequentemente, nenhuma música deve ter tonalidade tal que as mais variadas capacitações de homens e mulheres não consigam atingi-la. Nem devem ter melodia difícil de aprendizagem. E tampouco devem os músicos abusar da seleção de músicas novas; do contrário, a congregação estará sempre ouvindo e tentando aprender, e nunca realmente cantando com segurança. Essa foi uma das preocupações dos reformadores com a música: torná-la pública. Hinos com melodia fácil e previsível, letras compreensíveis para o leigo, e o refreio na suplantação do velho pelo novo. Se os músicos buscarem sempre músicas novas e negligenciarem as velhas, estarão roubando da comunidade o direito de cantar em paz.

2. Seja a execução musical feita com reverência e publicidade.

Esse ponto depende do anterior em muitos aspectos. Pois, certamente a composição tem em vista a forma da execução, de forma que esta depende daquela. Porém, ainda que a composição preze pela simplicidade e pelos princípios já expostos, é comum que os músicos esbanjem sua criatividade em arranjos e em acréscimos de harmonias, linhas melódicas sobrepostas e instrumentos. Nisso, devem ser eles também refreados. Sobre os instrumentos musicais, a Bíblia dá ordens para a sua execução, como os salmos e os exemplos dos levitas nos livros das Crônicas nos mostram. Muitos puritanos aboliram os instrumentos do culto cristão por entenderem que eles estavam necessariamente vinculados ao momento dos sacrifícios, que foram evidentemente encerrados. Porém, a Bíblia nos dá exemplos de instrumentos musicais tocados no culto mesmo sem haver sacrifícios. Se Deus não ordenou que parássemos com eles, então eles podem continuar. Porém, ainda assim, seu uso deve ser moderado, especialmente em nosso tempo em que os maiores ídolos humanos são artistas musicais. O músico, no culto público, não pode de forma alguma equiparar o brilho de sua execução musical ao dos artistas mundanos. Ele não pode deixar seus talentos tão evidentes de forma que eles chamem a atenção do público e obscureçam a glória de Deus. Isso não quer dizer tocar mal, mas sim não tocar tanto. Os instrumentos devem ser poucos e secundários, limitando-se a auxiliar o público na execução do canto. É natural que os músicos objetem a isso alegando que, quanto maior a magnificência da execução e da complexidade instrumental, mais apropriado é o louvor a Deus, pois “devemos fazer o nosso melhor”. Isso pode ser aceitável em outras ocasiões, mas não no culto público, por causa do princípio da publicidade. No culto público, inclusive na música, o principal é o cântico da congregação. Instrumentos muito complexos, numerosos ou notórios não ajudam em nada a congregação a cantar a uma só voz. Em lugar de um canto público, teríamos uma tocada particular para um público. Isso tem sentido somente em shows, não em cultos. O mesmo vale para as vozes. Os cantores devem limitar-se a servir de apoio para a congregação. Corais, orquestras e solistas não fazem mais do que roubar para si o que é do povo. A Igreja não é chamada para ir assistir a uma apresentação musical, mas sim para cantar a Deus. Alguma arte ajuda a Igreja a louvar; muita arte é exibicionismo reprovável. Em lugar de glorificar o nome de Deus, os músicos que abusam dos instrumentos e da voz colocam os seus talentos no foco, e cobrem a glória de Deus como uma neblina. Portanto: que a música preze pela simplicidade, pelo uso contido dos instrumentos e por uma execução que pertença em igual nível aos músicos e à congregação. Se os músicos estão fazendo mais do que a congregação pode fazer, extrapolando o que é necessário para ajudá-la, algo está errado.   

3. Que nenhum músico roube a atenção devida a Deus.

Como sabemos que é necessário haver músicos no culto? Com que direito das Escrituras sancionamos o “ministério da música”, ou algo do tipo? Ora, é óbvio que a congregação precisa do direcionamento de alguém que entenda de música. Como poderão tantos leigos cantar a uma só voz, no mesmo tom, em uníssono, no mesmo ritmo? Entendemos que a existência dos músicos valida-se pela própria existência de diversidade de dons, os quais Deus concede para a edificação do seu povo. Agora, é difícil colocar músicos de forma que não chamem a atenção para si, mas que limitem-se a ajudar a congregação a cantar corretamente, quando aprendemos na vida ordinária a admirar além da medida sóbria os músicos temporais. Por isso, a Igreja deve tomar medidas para que os músicos não fiquem em evidência além do necessário. Percebe-se, então, que grande desvio cometem as igrejas que, confundindo culto com show, fazem questão de colocar os músicos no lugar mais visível e que insistem que a comunidade deve olhar para eles e imitar seus gestos, danças e outras invenções humanas. Não é Cristo dissipado das mentes do povo quando toda a atenção é exigida dos músicos para si? A verdade teológica das letras não some da sensação do povo quando os músicos ficam falando e balbuciando suas emoções durante o andamento da música? Quando os músicos fazem isso, imitam os ídolos gospel, os quais não se envergonham se assentarem-se em tronos de anticristos quando percebem que podem comandar e manipular o povo como quiserem por meio de manifestações teatrais de sua presença. Mas as Escrituras ordenam o contrário: que imitem humildes servos do Senhor, que apontem e chamem a atenção para o Filho de Deus, e não para si. Isso nunca poderia ser demasiadamente enfatizado, devido à posição peculiarmente difícil inerente àquele que serve como músico.

Pela mesma razão, e pela falta de autorização bíblica, dizemos que “ministro de louvor” é um ofício inexistente. Já dissemos que os músicos são necessários. Porém, o ministro de louvor é aquele músico principal, que fica falando inutilidades à congregação, que toma a posição no centro dos músicos e que comanda toda a execução musical, bem como a própria seleção de músicas. Esse ofício não tem a aprovação das Escrituras e não serve em nada para a edificação, mas somente para a confusão. Ele é o principal que faz as coisas reprovadas no parágrafo anterior: que chama a atenção para si, que coloca-se como um dirigente acima dos demais – sendo que os ofícios de autoridade não podem ser outros além daqueles que a Bíblia define, os presbíteros e diáconos –, que usa a sua voz para si mesmo, e não para servir de apoio à comunidade, que fala uma série de coisas particulares e em nada pertinentes, etc. Os outros problemas desse ofício inventado pela imaginação pecaminosa estão no seguinte e último tópico.

4. Que o fim da música seja Deus, e não o homem.

Para encerrar, é adequado que todo adorador de Deus pergunte: pra quê música? Por que Deus ordenou que houvesse música em seu culto instituído? Porque ele não deixou só oração e pregação, prescindindo dessa arte? A Bíblia não explica por quê. Mas, podemos especular algumas coisas. A música tem essa peculiaridade de falar ao coração de uma forma particular. Ela é muito útil quando trazida para o contexto do culto. Ela facilita a memorização das doutrinas por causa da metrificação e da melodia. É muito mais fácil decorar uma música do que decorar um texto de igual extensão. Ela facilita que o povo de Deus aprenda a verdade das Escrituras. Nisso, ela ajuda a congregação a declarar quem Deus é. Essa é a função da música: declarar, proclamar a verdade de Deus, de forma que o povo aprenda facilmente a sã doutrina e a use para adorá-lo. Logo, o fim da música é Deus, e o que ela faz em nós é melhorar nossas mentes para proclamar com mais clareza e riqueza sobre quem Deus é. Isso sim glorifica Deus.

Agora, quase todas as igrejas modernas perderam essa reflexão. Aceita-se, sem contestação, que o fim da música é o homem. Muitos não conseguem imaginar a execução da música sem aquela coisa estranha chamada “ministração”. E essa é outra função do ministro de louvor, outra corrupção do uso da música no culto. Parece que o pressuposto é que a música deve mover nossas emoções para que nos elevemos a um estado espiritual mais sensível e mais límpido para que Deus nos edifique. Isso é, como eu disse, uma corrupção do propósito da música, em nada diferente do que as religiões pagãs fazem por meio dos mantras. A Escritura jamais nos autoriza a usarmos a música no culto para esse fim no homem. Ministração é invenção supersticiosa de mentes maculadas com religiosidade primitiva. É uma transgressão do culto racional, um retorno a religiões romanas e africanas. É incompatível com a solenidade e com a edificação espiritual do culto público. Embora a ministração seja feita com o pretexto de edificação, essa tal edificação tem significado completamente diferente daquilo que a Bíblia define. Em nenhum lugar a Bíblia associa edificação com esse sentir-se bem e emocionar-se positivamente. Edificação, de outro modo, é sempre vinculada à instrução e assimilação da verdade de Deus. A ministração não instrui ninguém, não é o meio ordinário escolhido por Deus para o arrependimento e a santificação e não tem lugar no culto público. Emoções nunca devem existir senão em consequência de perceber a verdade de Deus. Emoções produzidas por mantras ou por quaisquer outros meios psicológicos não são válidas no contexto de adoração. E ninguém deve buscar isso na música do culto. Quem faz isso incorre no pecado do desvio da finalidade. A ministração faz de Deus um meio para o homem; faz do homem o fim. E a insistência em produzir emoções na ministração necessariamente levará à quebra da reverência e da sobriedade. Desses momentos emotivos, surgem as espontaneidades loucas, as glossolalias e outros surtos psicopatológicos; e qualquer observador atencioso perceberá que tais inovações carismáticas nada fazem para produzir fruto espiritual, mas são excelentes para envergonhar o nome de Cristo entre os gentios.


André Duarte