terça-feira, 30 de abril de 2013

Cinco solas e a atualidade



        Se uma Igreja não é católica, ela deve ser, muito provavelmente, evangélica. E por que ela é evangélica, e não católica? Ah, porque, há 500 anos, Matinho Lutero rompeu com a Igreja Católica quando fez a Reforma Protestante. Aí, essa Igreja em questão, como não é católica, e por causa de sua ancestralidade, ela é do “grupo” da Reforma, certo?
           
Esse tipo de pensamento informal é muito comum para evangélicos que não conhecem sua história. Geralmente, pensa-se que evangélico é sinônimo de protestante. Essa ideia só faz sentido se pensarmos em ancestralidade. Quer dizer, se uma Igreja não é católica, pensamos que ela deve ter origem na cisão protestante da Idade Moderna (tirando ramos menos conhecidos, como católicos ortodoxos, monofisistas, nestorianos, etc). E, por causa da ancestralidade, assumimos que há uma similaridade doutrinária entre os ideais da Reforma e os da Igreja evangélica em questão. O problema é que, hoje em dia, isso frequentemente se prova errado. A maioria das igrejas evangélicas mal sabem o que os reformadores pensavam e raramente seguem suas interpretações. Se Lutero vivesse hoje, falaria contra os evangélicos tanto quanto falou contra os católicos.
           
Embora haja ramos diferentes do protestantismo – luteranismo, calvinismo, arminianismo, anglicanismo, etc –, os protestantes estão unidos pelas cinco “solas”. Se você escreve “cristão protestante” no facebook, deveria conhecer as cinco solas. E mais, deveria saber o que essas cinco solas significam no contexto protestante. Ei-las:
           
Sola Scriptura (somente a Escritura). Somente a Bíblia é a Palavra de Deus, inspirada, canônica, autoridade sobre fé e prática. Há dois subpontos aqui: a Tota Scriptura – a Bíblia inteira é Palavra de Deus, não apenas pedaços dela; e a Claritas Scriptura – a Bíblia é clara, inteligível para todo tipo de pessoa. Os reformadores afirmam com esse termo que a Igreja Romana erra em pensar que a tradição é tão inspirada quanto a Bíblia, que as decisões papais e conciliares são divinas, que a Bíblia tem um intérprete oficial extrínseco e que somente o clero é capaz de entendê-la. A Bíblia inteira é autoridade sobre a vida de cada crente e sobre a forma da Igreja.
            Portanto, se alguma Igreja evangélica despreza a capacidade de leigos entenderem a Bíblia; se os seus líderes pensam que falam palavras diretas de Deus no púlpito; se alguém acha que que teve uma visão, sonho, revelação ou profecia de uma verdade divina autoritativa, esse ente não é protestante e retornou aos erros do catolicismo. Se uma Igreja, oficial ou implicitamente, tem seu direcionamento inspirado em partes da Bíblia, contradizendo outros trechos, ela é uma nova seita relativista. Se algum pastor pensa que ele tem uma capacidade mais plena de entender a Bíblia que um leigo “não ungido”, ele trai sua afirmação de protestantismo. Se alguém firma a sua vida em textos favoritos e ignora os outros; se uma Igreja pensa que decisões conciliares, ordens pastorais e pregações no púlpito são inspiradas e canônicas; se alguém comete qualquer desses erros, retrocedeu aos paradigmas hereges medievais.
           
Sola Fide (somente a fé). Deus jamais se satisfaz com obras nossas para aplacar a sua ira contra nossos pecados. A única maneira de alcançar a absolvição de Deus e de ser por ele aceito é através da fé em Cristo. Somente a fé no que Jesus fez por nós, e não no que nós mesmos fazemos, é capaz de cumprir o requerimento de Deus. Quem crê em Jesus e em sua obra é aceito por Deus. Essa doutrina se contrapõe à ideia romana de que a salvação é por fé mais obras, isto é, que é necessário cumprir ordens além de crer em Jesus. Protestantes, entretanto, sabem que as obras são necessárias, mas que elas não podem ser efetuadas independentemente da verdadeira fé, pois é a fé que produz as obras. Assim, confiar em obras para a salvação é heresia. Também, por consequência da sola scriptura, é heresia pensar que existem obras para serem cumpridas além daquelas indicadas pela Bíblia.
        Por essa razão, todo aquele que desloca a fé em Cristo para a fé no líder, ou no programa, ou na sensação do templo está cometendo idolatria. Se alguém ora tendo fé em sua própria oração, e não no Deus que é sábio e soberano, adora a si mesmo. Quem confia em qualquer obra humana para ser amado por Deus não o conhece. Se alguém pensa que permanecerá em Cristo por causa de uma rotina de devocional inflexível, ou acha que a segurança da Igreja está nas mãos do líder, ou define fé como uma vida pautada por certas regras ascéticas, ou catexiza a fé em qualquer pessoa, objeto, prática, rotina ou sentimento, tirando a exclusividade de Jesus, esqueça que concorda com a Reforma. De igual modo, todo aquele que esvaziar a fé de seus bons frutos, definindo-a como uma simples profissão oral, capacidade sentimental ou abstração mental comete transgressão contra o evangelho. Se alguém pensa que a fé consiste de uma oração “aceitando Jesus” e uma vida medíocre, dando frutos carnais, precisa de arrependimento. Quem diz que crê em Cristo mas, na verdade, crê em sua própria performance religiosa, iludindo-se por uma sensação de estabilidade e conforto, é mentiroso. Quem professa fé em Jesus, mas não obedece-lhe como o Senhor que ele é, incorre em incoerência fatal. Se algum pastor ensina que é necessário praticar certas obras além da própria obra da fé, é, na melhor hipótese, um neófito.   
           
Sola Gratia (somente a graça). Protestantes sabem que nunca merecerão o favor de Deus. Não é por qualquer coisa que façamos que Deus nos aceita, mas unicamente por sua graça dada por meio do que Jesus já fez. Deus nos ama mesmo que sejamos pecadores, pois, quando ele nos olha, são os méritos de Cristo que ele vê, não os nossos. Quem crê em Jesus recebe o dom da graça de Deus, porque Cristo satisfez a justa ira e nos concedeu o seu favor imerecido. Nossas obras de justiça não valem nada, jamais melhorariam o saldo nos nossos pecados. Somente a graça de Deus é o motivo de sermos salvos e é o poder para nos libertar do domínio do pecado. Não é, por exemplo, através de muitas orações, jejuns ou da compra de indulgências que alcançamos a bondade de Deus.
Dessa forma, se alguém pensa que é salvo por causa de suas obras de justiça, é herege. Se alguma Igreja prega que o apego às ordens morais é suficiente para subjugar a carne, não conhece o evangelho. O pastor que acrescenta regras humanas para a justificação é desviado, e quem pensa que o amor de Deus vem por causa da mais recente performance religiosa comete idolatria. Qualquer tipo de ascetismo crido como necessário ou de cargo ministerial ocupado com o fim de assegurar a aceitação de Deus é odioso aos olhos do Senhor que realizou toda a obra necessária. Se alguém, de maneira ridícula, diz que crê na graça de Deus, mas pensa que é preciso obedecer a certas regras para assegurar essa graça, está confuso e perdido. Quem diz que é salvo pela graça, mas pensa que a segurança dessa salvação está nos últimos atos morais praticados, não sabe o que diz e não conhece o Senhor. Igualmente, quem fala sobre a graça enquanto se deleita no pecado é hipócrita e não compreendeu nada. Quem usa a graça de Deus para abrandar a gravidade do pecado, e não para nela encontrar refúgio contra as tentações, zomba do Espírito. A Igreja que vive uma graça que é mera abstração e sentimento, e não um real poder para fortalecer o espírito contra a carne, e busca esse poder em moralismos rígidos e extra-bíblicos ainda não foi reformada, mas vive a perdição romana medieval.

Solus Christus (somente Cristo): Jesus Cristo é tudo o que precisamos para cumprir o propósito para o qual fomos criados. Somente nele há salvação, apenas nele há santificação. Jesus é o único Cabeça da Igreja. Para os reformadores, isso significava que o papa não é o chefe da Igreja, que o clero usurpa o sacerdócio único de Jesus Cristo, que a missa não pode ser uma repetição do sacrifício dele. Jesus Cristo fez uma obra perfeita, a qual foi única e suficiente na história, e toda a vida cristã é fundamentada nisso. Jesus pagou o preço dos nossos pecados, transferiu seus méritos para nós, purificou o nosso espírito pelo seu sangue e nos deu vida eterna em sua ressurreição. E, agora, assentado no trono, ele governa a Igreja conforme deseja, pelo seu Espírito.
Qualquer pastor que se pronuncie como o chefe incontestável, o “intocável ungido do Senhor”, é um anticristo. Qualquer Igreja que tem as ordens e as palavras do seu pastor em primazia sobre as de Cristo é idólatra e anátema. Qualquer crente que busque acrescentar rituais e programas espirituais à obra de Cristo para fortalecer o acesso a Deus está dividido entre dois senhores. Se alguém pensa que há alguma obra pendente a ser feita além do que foi efetuado por Jesus, não o reconhece como único e suficiente Salvador. Se uma Igreja assume autoridades eclesiásticas paralelas à de Jesus, como chefes inspirados e inerrantes, está cega. Se um pastor pensa que o seu governo sobre a Igreja é automaticamente aprovado por Jesus devido ao seu posto, é um usurpador do Cabeça. Se alguém desobedece a Jesus para obedecer ao pastor, esclareceu quem é o seu senhor. Aquele que pensa no pastor como um sacerdote, isto é, alguém que faz a mediação entre o leigo e Deus, retornou ao catolicismo. Quem pensa que pode aumentar sua comunhão com Deus em função de sua atuação ministerial ou de seus dons escandalosos, e não por causa da completa e perfeita obra sacerdotal de Jesus, está em grave erro. Quem busca se santificar com base na própria vontade, e não no sacrifício eficaz de Cristo, proclamou a si mesmo como Salvador e não reconhece a própria fraqueza. O pastor que lidera a Igreja com base em uma suposta vitaliciedade e inerrância, e não como humilde servo do Senhor Jesus, não conhece nem a si mesmo nem ao Senhor. Se alguém se submete ao Espírito Santo para dele aprender ou receber qualquer coisa alheia à glorificação de Jesus, é ignorante quanto ao Deus que diz servir. E toda Igreja que, em seus ensinos e pregações, não invoca a obra de Cristo para a salvação, mas atém-se apenas às regras e à autoestima, está apartada do evangelho.

Soli Deo gloria (somente a Deus a glória). Significa que tudo o que fazemos, dentro e fora da Igreja, tem como finalidade a glória de Deus. E a glória deve ser dada somente a ele, contrariando a doutrina da glória dada a Maria, aos santos, aos anjos e ao papa. Não há ninguém digno de toda a glória a não ser Deus, pois somente ele é a razão de todas as coisas. Dele procedem todas as bênçãos, dele é o governo absoluto, dele é a eternidade e a perfeição, dele é a boa e soberana vontade. A Igreja não existe senão para ele.
Portanto, a Igreja que glorifica os seus líderes é idólatra. Líderes que se proclamam como celebridades, buscando aplausos para suas inflamações orais, amando a bajulação, bem como as igrejas que os apoiam e os servem nessas coisas, esqueceram-se de Deus. O líder que pensa que a Igreja é sua, e não de Deus, erra gravemente. Se uma Igreja sacraliza programas, mantras, lemas e metas, como se fossem inabaláveis, inquestionáveis e divinamente inspirados, desviou-se de dar glória somente a Deus. A Igreja que busca se afirmar por meio da propaganda voltada às suas próprias qualidades, ou por artifícios estranhos à Palavra que a tornam admirável perante o mundo, que preocupa-se mais com crescimento numérico e financeiro do que com a santidade de seus membros, que proclama-se como o verdadeiro organismo capaz de conquistar o mundo, que vive para satisfazer os desejos e ordens do seu líder e não os de Deus, essa Igreja glorifica a si mesma e dispensa o Cabeça. Se uma pregação tem como finalidade glorificar qualquer evento, programa, resolução ou pessoa, mesmo que seja personagem bíblico, além de Deus, ela é herege em seu fim. Se um crente, uma Igreja ou um pastor achar que existe para cumprir qualquer outro objetivo que não for a glória de Deus, deve se arrepender.

Sabendo dessas coisas, seja coerente. Você é um cristão protestante que resgatou a doutrina dos apóstolos, ou pertence a qualquer seita que se pareça com cristianismo?

           André Duarte

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Como ter certeza da salvação



          Sou salvo mesmo? Tenho tanto o que melhorar, tanto o que entender, vivo caindo no mesmo erro bobo... e se eu não for realmente um crente? E se o que eu vivo não tiver nada a ver com o que um crente deve viver? Todo crente cai nessas dúvidas de vez em quando. Em parte, a razão por que isso acontece é que nós não realmente sabemos perfeitamente todos os detalhes da fé, todas as possíveis práticas de pecado. Talvez também por existirem tantas vertentes e linhas teológicas no cristianismo, ou pelo resquício carnal de confiar em justificação por obras – e, obviamente, sempre estamos em falta nisso. Claro que também existe a boa motivação de querer agradar a Deus e rever as próprias posições, e isso é louvável. Para lidar com essas dúvidas, existe a belíssima carta de 1João. Ela tem como finalidade distinguir quem é cristão mesmo e quem é gnóstico, conforme a confusão da época, mas sua aplicação transcende o contexto imediato. Para isso, o apóstolo propõe diversos testes em forma de antíteses e coloca ainda uma verdade imensamente confortadora. Vamos ver cada uma dessas coisas, mas não antes de desfazer certas noções erradas.

            Em primeiro lugar, a dúvida não deve ser reprimida. Não é verdade que qualquer dúvida é acusação de Satanás. Mesmo que seja, não é para ser simplesmente negada, mas investigada. E se você descobrir que sua dúvida era correta e que realmente você deve se arrepender e se converter de verdade? Não confie na oração que você fez no passado aceitando Jesus. Verifique o seu procedimento à luz dos testes de João e você resolverá a sua dúvida. Por outro lado, não conviva com a dúvida. Não espere até que ela desapareça, não a ignore. Ela é importante para ser desvendada. É inevitável que venha a dúvida, mas ela deve ser tratada como a Escritura ensina. Não reprima como se fosse mentira do diabo nem esqueça-a como se ela não importasse. Trate-a com a seriedade e com o bom senso que é devido.

            O cristão anda na luz para a purificação e comunhão. A luz de Cristo revela quem somos, nossa pecaminosidade. Ela é a verdade santificadora de Deus. Por outro lado, quem vive em trevas ainda esconde a verdade e se ilude na própria “justiça”. Isso significa que o verdadeiro crente, em primeiro lugar, reconhece que é pecador. Não porque tenha pecado algumas vezes na vida, mas porque sua inclinação natural é para o pecado. Mentiroso é quem se acha capaz de ser iluminado pelas próprias obras. Mas a verdade é que a luz vem de Deus. É necessário, em primeiro lugar, que o crente se humilhe e saiba que ele é indigno e totalmente dependente da graça de Deus para segui-lo. Apenas isso o capacitará para ter verdadeira comunhão com a Igreja, pois quem se orgulha de sua própria justiça não pode se relacionar com aqueles que sabem que são purificados somente por Cristo. O crente peca sim, mas ele confessa seus pecados; o falso pensa de si mesmo como muito correto. Esse é o primeiro teste: você se reconhece como pecador e merecedor da ira, e sabe que somente na luz de Deus existe santificação? Ou você ainda confia em seus esforços e méritos para agradá-lo?

            O crente é obediente aos mandamentos. Quem anda na luz de Cristo, quem foi iluminado pela sua verdade não reagirá de outra forma senão com profunda devoção e obediência. Não é possível que alguém conheça Deus ou o ame de verdade sem uma vida de obediência. Se você não obedece a Deus, ainda não o reconheceu como Deus. Você não deve obedecer-lhe para conquistar o seu amor; do contrário, você ainda não foi iluminado pela verdade a respeito do sacrifício de Jesus. Se você realmente crê em Deus, oferecer-se-á em obediência. João escreve várias vezes que, se alguém ama Jesus, obedecerá aos seus mandamentos. Examine-se nesse teste também: você vive em obediência às leis de Deus? Ou vive para servir aos próprios interesses e conceitos? Você se entrega totalmente à vontade dele, ou procura um meio-termo? Veja que esse teste está intimamente relacionado ao primeiro. O verdadeiro cristão é obediente a Deus e, ao mesmo tempo, sabe que sua obediência é mera gratidão por quem Deus é, e não como um meio para dele alcançar a bênção e o favor. A obediência vem da humildade, não do orgulho.

            O crente ama os seus irmãos. Frequentemente, João diz que, se alguém odeia o seu irmão, é um assassino, mas quem ama o seu irmão é alguém que foi iluminado pelo amor de Deus. Perceba que o amor é amplo, engloba todo tipo de bem que possamos fazer ao próximo. João dá o exemplo de alguém que vê o seu irmão em necessidade e não o ajuda – esse alguém não conheceu o amor de Deus. O amor ao irmão só é possível para alguém que conheceu o amor de Deus. Pois Deus é amor, e somente dele procede toda a introjeção e a vida em amor. Esse amor é o reflexo do amor de Cristo, que buscou a reconciliação com os perdidos, que doou sua vida e viveu em altruísmo em todo o tempo. Além disso, se o meu irmão é alguém como eu diante de Deus, por quem Cristo também morreu, que Deus também amou para salvá-lo, como posso eu dizer que amo Deus e não amar esse amado dele, que o é tanto quanto eu? Examine-se quanto às manifestações de amor: você perdoa o seu irmão ou passa o tempo todo cobrando dele a ofensa que ele lhe fez, seja em fato, seja em sua imaginação? Você busca se reconciliar com ele quando vocês brigam? Você gasta tempo com ele quando ele precisa? Você discute doutrina com ele para edificá-lo ou para humilhá-lo? Você se alegra com ele e se entristece com ele, conforme ele precisa? Por outro lado, você o repreende com franqueza e ponderação para discipliná-lo, ou fica todo fofo diante dos pecados dele?

            O crente demonstra crescimento. Quem fica estagnado em seus conhecimentos e sua maturidade atual demonstra afastamento de Cristo. Veja que João fala a “pais”, “filhos” e “jovens”, termos que os estudiosos interpretam como fases simbólicas do crescimento de todo crente. Entenda que todos esses sinais de ser um cristão não são perfeitos de imediato. Há um processo de santificação e maturação que melhorará progressivamente as respostas a esses testes. Mas deve haver esse crescimento. A salvação tem justamente o propósito de nos levar, pelo Espírito da graça, a uma semelhança com Jesus cada vez maior. Muitos crentes ficam estagnados em mediocridade por anos e, só depois que algum fator renovador ocorre, ele percebe que estava enganado e começa a desejar uma plenitude maior do conhecimento e da obediência a Deus. Não é o desejo de Deus que a vida cristã seja marcada por altos e baixos o tempo todo. Deve haver progressão, a sede por Deus precisa aumentar. Para isso, a irmandade é imprescindível. Todo crente precisa da ajuda dos irmãos para crescer e, em especial, de um amigo com um pouco de mais maturidade para influenciá-lo. Então, vamos ao exame: você está realmente melhorando ou está confortável na mediocridade? Se está estagnado, você procura a ajuda de crentes mais maduros, ou apenas fica quieto esperando algo acontecer? Você é vencido vez após vez pelo mesmo pecado, ou ele fica cada vez menos atraente pra você? Você busca conhecer mais as Escrituras, ou a leitura repetitiva e não meditada dos seus textos favoritos já está de bom nível? Lembre-se de que você somente reformará suas imperfeições constantemente se manter fixos seus pensamentos na obra de Cristo. Não adianta apenas adotar rotinas e métodos se a sua confiança não estiver no que Jesus já fez e ainda faz por você.

            O crente rejeita o pecado. Esse é um complemento do segundo teste. João diz que quem vive pecando (“peca”, no grego, está escrito no contínuo, não no aoristo) é filho do diabo, não de Deus. Novamente, lembremo-nos de que ser cristão não é ter perfeição moral, e sim confessar os pecados e resolver, por amor a Cristo, não voltar a cometê-los. O pecado não pode ser eliminado, mas pode ser derrotado pela graça de Deus. Momento do exame: como você lida com seus pecados? Você os confessa em contrição logo que toma consciência deles, ou apenas deixa acumular como se pouco importassem? Você se avalia constantemente para encontrar em si o erro e abandoná-lo, ou dá mais importância ao pecado dos outros do que aos seus?

        O crente crê na doutrina certa. A doutrina nunca pode ser subestimada, pois todo o comportamento e as crenças menores dependerão da doutrina. João diz que quem nega que Jesus é o Cristo ou quem nega que ele veio em carne é um anticristo, mas quem confessa Jesus como o Cristo, o Deus encarnado, é realmente cristão. Agora, é muito importante entender que aqui a doutrina não é só aquela professada de boca, mas aquela que é verdadeiramente crida de forma a nortear toda a vida cristã. Lembre-se daqueles homens no texto do sermão do monte que dirão “Senhor, Senhor, não curamos em seu nome etc?”. Esses homens sabem a correta doutrina, pois chamam Jesus de Senhor – e mais, chamam Jesus de Deus, visto que o grego “kurios” é o título de Senhor que os governantes usavam para si mesmos com sentido de divindade. Mas essa profissão de fé nada fez para que esses condenados se submetessem à vontade de Deus. Dessa forma, não é verdade que todo aquele que professa a ortodoxia é cristão, mas todo o que nega a ortodoxia não é cristão. Portanto, verifique: você crê nas doutrinas fundamentais do evangelho, ou você inventou suas próprias relativizações? Você realmente vive de acordo com o que você diz, ou são apenas palavras abstratas? Você deseja aprofundar-se na doutrina cada vez mais mediante o estudo das Escrituras e do aprendizado com os mestres, ou você despreza essas coisas como se fossem secundárias?

            Já que tocamos no ponto do sermão do monte, vamos ver três características que crentes falsos têm em comum com crentes verdadeiros (oh, Tim Keller...). Primeiro, a profissão da doutrina correta, que já vimos. Segundo, intensa emoção diante de Deus. A repetição “Senhor, Senhor” é uma expressão emotiva forte; essa é a função da repetição no hebraico. Veja outros exemplos na Bíblia: “Deus meu, Deus meu” em grande desespero, “Absalão, Absalão, meu filho, meu filho”, com muito choro e muita tristeza, “Este é o templo do Senhor, o templo do Senhor, o templo do Senhor”, fortes emoções no santuário de Deus pela sensação de invencibilidade (Jeremias 7). Assim, tanto crentes falsos como verdadeiros se emocionam com Deus. Terceiro, ministério ativo. Os tais que foram apartados de Cristo se vangloriaram de sua atuação ministerial, com curas, pregações, exorcismo. Atividades eclesiásticas, por mais belas e bem sucedidas que pareçam, não são prova de verdadeira fé. Pense, portanto, da seguinte forma: a presença de profissão de ortodoxia, emoções intensas com Deus e exercício de dons não é prova de conversão verdadeira, mas ausência dessas coisas é prova de falsidade.
           
Resumindo o que João diz: se você é cristão, você apresenta as características: fé na doutrina fundamental correta, crescimento na maturidade espiritual, humildade e transparência quanto aos próprios erros, confiança somente no sacrifício de Cristo para a purificação, repugnância pelo pecado, vida de obediência à lei de Deus e amor servil e zeloso pelos irmãos. Se você dá esse fruto, você é um cristão. Se você não os apresenta, arrependa-se e creia em Cristo. Se você acha que está mais ou menos, arrependa-se também, reveja seus fundamentos e apegue-se ao Senhor para o crescimento. E lembre-se da grande verdade consoladora que João nos diz: “Assim saberemos que somos da verdade; e tranquilizaremos o nosso coração diante dele quando o nosso coração nos condenar. Porque Deus é maior do que o nosso coração e sabe todas as coisas. Amados, se o nosso coração não nos condenar, temos confiança diante de Deus e recebemos dele tudo o que pedimos, porque obedecemos aos seus mandamentos e fazemos o que lhe agrada (1 João 3:19-22)”. A sua salvação não depende de você  sentir-se salvo, sentir-se santo. Ela é um fato. E Deus, que sabe que você está seguro com Cristo, consolará o seu coração pelo Espírito.

            André Duarte

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O amor, a fé e os mandamentos



           Quando pensamos em salvação e relacionamento com Deus, costumamos pensar apenas na questão de fé. Afinal, toda a teologia protestante é firmada na doutrina da justificação pela fé, o tema central de Romanos e Gálatas. Eu mesmo uso muito esse raciocínio. Quero, agora, desafiar a mim mesmo a falar um pouco sobre a supremacia do amor, o que costuma ficar em segundo plano.
           
Pois a justificação pela fé é, na verdade, uma linguagem para expressar uma realidade que, em outras textos da Escritura, recebe outros termos. Embora seja conhecida como a marca paulina, a justificação pela fé quase não aparece nas outras cartas de Paulo e nem nas de outros apóstolos. A carta aos Efésios expõe toda a salvação realizada por Cristo sem mencionar justificação pela fé. Agora, vamos pensar em João: os escritos joaninos falam muito a respeito de doutrina e fé, mas são centrados no amor. Como entender essa relação entre amor e fé? São aspectos diferentes da mesma realidade metafísica, ou conceitos bem distintos? Vemos que, em 1Coríntios 13, Paulo diz que o amor é maior que a fé. No entanto, não penso eu que Paulo esteja falando da mesma fé salvadora e primordial de Romanos e Gálatas. Pois, em 1Coríntios, essa fé viva e suficiente não é comentada. A fé em 1Coríntios é um termo para visão otimista. No capítulo 12, Paulo diz que alguns recebem o dom da fé, e não é possível que isso se refira à fé necessária para todos os crentes serem salvos. No próprio capítulo 13, Paulo diz “ainda que eu tivesse uma fé capaz de mover montanhas, se não tivesse amor...” Ora, essa descrição da fé em nada se relaciona com a confiança da vida em Jesus, mesmo porque é impossível que a fé salvadora de Romanos seja vazia de amor. Por essas razões, penso que, quando Paulo distingue entre amor e fé no fim do capítulo 13, essa fé não é a fé da justificação e salvação, mas sim esse dom visionário e assertivo mencionado antes.
           
Quando vamos para João, vemos a fé essencial unida ao amor. Isso nem sempre fica explícito. Em João 6, por exemplo, vemos que a multidão é acusada de não crer em Cristo e, ao mesmo tempo, é patente que ela não tinha amor a ele, mas apenas aos seus benefícios. Também, assim como aprendemos com Paulo que a fé necessariamente resulta em obediência, vemos em João que o amor é expresso na prática das ordenanças. Fé e amor são inseparáveis. A fé em Cristo produz imediatamente amor por ele, e o amor a Cristo cumpre o propósito da fé. Por conseguinte, como bem explica João, é necessário amar Deus para ser salvo. É tão correto falar da salvação pela fé quanto da salvação pelo amor. E, assim como essa fé é definida biblicamente, também é o amor salvador. Esse é um ponto difícil para compreendermos, porque não estamos tão acostumados a pensar em termos de amor como estamos em termos de fé e, consequentemente, os conceitos mundanos sobre amor nos afetam mais do que os erros sobre a fé. Como compreender o amor salvador à luz da Bíblia?
           
Amor é autossacrifício. Assim como fé em Jesus significa confiar em toda a sua obra e sua palavra para nossa salvação, resultando em uma total entrega de nós mesmos e o abandono do pecado, o amor – bem, é tudo isso também. Talvez, na nossa imaginação, amor e fé tenham cores e texturas diferentes, mas existencialmente são a mesma coisa. Por isso, podemos falar sobre amor com tanta centralidade quanto falamos sobre a fé.

Amor é, também, a nossa resposta ao amor de Deus. João diz que Deus é amor. Amar é divino. Por conseguinte, é impossível que o amor surja de nós mesmos, por esforço próprio, força de vontade. Nós apenas amamos Deus porque ele nos amou primeiro. É o amor de Deus que conquista o nosso. Quando Jesus doou sua vida por nós, ele o fez por amor ao Pai, para cumprir sua vontade, e por amor a nós, para sermos resgatados. Agora, perceba que não basta a ideia de que Deus ama todo mundo automaticamente para nos cativar a amá-lo. O que nos move a amá-lo é o fato de que o amor dele foi custoso. Deus tanto nos amou que se dispôs a pagar pessoalmente o preço da nossa salvação. Vendo nós em dívida, totalmente perdidos e condenados, Deus mostrou-se tão amoroso que não poupou seu único Filho por nós. É essa realidade que nos move a responder com amor. Nós não conquistamos o amor dele por nada que fizemos, mas foi ele quem nos amou primeiro quando ainda éramos rebeldes.

Quando somos conquistados por Jesus pelo amor, podemos realmente servi-lo. Pois Cristo nada amou neste mundo a não ser os seus perdidos a quem resgatou. Da mesma forma, não mais necessitamos amar o mundo, visto que temos o único amor que importa, o amor de Deus. Somente a ele precisamos amar. Apenas o amor a Deus é plenamente satisfatório. Dessa maneira, entendemos porque o amor a Deus e o amor ao próximo são os maiores mandamentos. Se amamos Deus com toda a nossa vida, não mais amamos as vaidades que ele odeia. Se Deus ama também o nosso próximo, não nos damos o direito de não fazer o mesmo. Se amamos Deus, como não amaremos quem ele também ama? Essa é a base da obediência a Deus e do amor ao próximo.

Perceba o contraste com o amor mundano. O mundo ensina que o amor é um forte sentimento. É dessa forma que muitos crentes “amam” Deus: sentindo um grande acalento ao pensar nele, com fortes emoções, mas ignorando o que ele ordena. Em outro aspecto que resulta na mesma consequência, o amor mundano é totalmente relativo. Isto é, “quem realmente ama não impõe regras”. Ora, faz algum sentindo você dizer que ama o seu pai, mas não obedecer ao que ele diz? Ou dizer que ama sua esposa enquanto adultera contra ela? O amor a Deus é comprovado pela obediência. Pois o amor de Cristo também dependeu de completa obediência ao plano do Pai. Quem não obedece aos mandamentos de Deus não o ama, sendo totalmente irrelevantes as emoções chorosas em ministrações e as mensagens gospel no Facebook. A ação da obediência é tão importante que ela não depende do sentimento do amor a Deus. Isto é, você deve obedecer a Deus por amor a ele mesmo se não estiver com vontade. Parece contraditório à nossa maneira de pensarmos em amor. Pensamos que, se não estivermos com vontade de obedecer às regras de Deus, é melhor não obedecer, senão não seremos “autênticos”, ou cairemos em “legalismo”. Mas o amor a Deus é também mostrado nisto: servi-lo e agradá-lo mesmo se você teve um dia ruim ou de está de má vontade. Se você obedece a Deus apenas quando tem vontade, está amando apenas a si mesmo, por considerar que sua vontade é mais importante que a de Deus. O amor a Deus de forma alguma excluirá a vontade. Mas é a ação que antecede o ânimo, e não o contrário. Pratique o que Deus ordena por amor a ele, não por amor próprio, e você aprenderá a ter deleite nisso.

Quanto ao amor ao próximo, ele vem em segundo lugar porque ele depende do amor a Deus. Jesus disse que Deus concede sol e chuva aos justos e aos ímpios. Isto é, Deus mostra bondade até mesmo com os perversos. Da mesma forma, devemos amar as pessoas mundanas. Esse amor depende também da definição do amor de Deus. Não significa gentileza diante das práticas perversas delas, não significa a troca da repreensão pela aprovação. Pessoas mundanas precisam ser exortadas com a verdade de Deus, e isso é o um ato de amor muito maior do que apenas o sorrir e ser compreensivo. Pois, como essas pessoas se arrependerão e serão salvas para o amor a Deus se não forem convocadas? É importante também que os mundanos não participem plenamente das bênçãos eclesiásticas que aos salvos foram dadas; do contrário, poderão pensar que são salvos simplesmente por conviver com os santos e estarão mais perdidos do que nunca. A verdade deve ser proclamada, e  a dureza do evangelho não pode ser escondida para não ofender, pois não há maior ato de condenação do que mascarar a límpida mensagem de salvação com palavras agradáveis.

Ainda mais crucial é o amor aos irmãos. Isso é tão sério que João diz que, se alguém não ama o seu irmão, nunca conheceu Deus. São os irmãos que foram salvos e perdoados por Deus. Como não perdoaremos quem Deus já perdoou? Como não comungaremos com alguém que é unido a nós pelo mesmo Espírito? Como deixaremos de ajudar alguém a quem Deus se dispôs a ajudar ao custo de seu Filho? Como não repreender um irmão em pecado, se Deus também disciplina a quem ama? Jesus ensina que devemos servir em amor aos nossos irmãos assim como ele o fez primeiro. O amor é o ser de Deus, e a Igreja é chamada a imitá-lo em seu caráter. O amor de Deus em nós é princípio do nosso amor a ele e do nosso amor aos irmãos. Assim, somos todos unidos pelo amor selado pelo Filho de Deus através do seu Espírito. 1Coríntios 13 é mais do que uma descrição do amor entre irmãos, mas é também a exposição do amor que Deus dispensou a nós primeiro. Viva com essa base, e essa será a prova de sua salvação.

André Duarte

terça-feira, 16 de abril de 2013

A obra de Cristo


            
            Vou praticamente plagiar a última aula da EBD da Semear, porque achei muito boa pra virar artigo. Bem, costumamos pensar que somos salvos simplesmente porque Jesus morreu por nós. Se, porém, pensarmos que a obra de Cristo para nos salvar consiste somente de sua morte, o evangelho torna-se apenas uma mensagem emotiva, uma chantagem emocional. Já vi pessoas pregando e dando essa tônica, como se dissessem “Puxa, Jesus morreu por você e você nem liga?”. O erro do escolástico Pedro Abelardo foi justamente pensar dessa maneira, que o sacrifício de Cristo só foi necessário porque era a melhor maneira de conquistar o nosso amor e de dar o exemplo para o amor ao próximo, devido a essa emoção de compaixão. De fato, a morte de Jesus é o centro de sua obra. Mas, para a sua morte ser válida para a salvação, foi necessário que esse sacrifício tivesse qualificações prévias e desdobramentos para além da morte. É correto dizer que somos salvos por causa da morte de Jesus, mas é mais completo dizer que somos salvos pela sua obra. Qual é, então, a sua obra? Vamos entendê-la em seis pontos.

            A encarnação de Jesus. Essa é uma das principais ênfases de João em seu combate ao gnosticismo, tamanha a sua importância. Também é o centro de toda a discussão dos séculos pós-apostólicos a respeito da divindade de Cristo, a união de suas duas naturezas (divina e humana) e até mesmo a questão da veneração de imagens. 1João 4 diz que, se alguém nega que Jesus veio em carne, é um anticristo. Ora, a encarnação pressupõe que o Filho de Deus já existia antes de vir em carne. É importantíssimo que Jesus tenha sido Deus e homem para nos salvar. Sendo Deus preexistente, o valor do sacrifício de Jesus é infinito, e somente assim a infinita dívida contra Deus pode ser quitada. Se o Deus Altíssimo foi ofendido pelo pecado, somente ele tem poder para fazer reparação a si mesmo, pois qualquer um que fosse menos que Deus já seria, por definição, imensamente inferior a ele e incompetente para pagar a dívida do pecado (Aaah, a brilhante teoria do bispo Anselmo!). Por outro lado, é também absolutamente necessário que Jesus seja humano. Pois somente um humano poderia representar os humanos diante de Deus. É necessário que o nosso substituto seja um igual a nós, logicamente. Como homem, Cristo se identifica conosco, representa-nos e morre como substituto. Pense também que o tornar-se humano já é um ato grandioso do Deus eterno em amor por nós. Filipenses 2 aqui – Cristo, mesmo sendo Deus, humilhou-se, deixando a glória e o paraíso, assumindo a condição fraca e pequena do homem, vindo a ser mesmo um servo dos outros homens. Assim, desde a sua encarnação, Jesus já estava iniciando a sua jornada para a nossa salvação.

            A vida perfeita de Jesus. Tendo se tornado humano, Jesus precisa viver como um humano. Sua vida é marcada pela perfeita obediência à vontade de Deus. Jesus jamais pecou. Pense que fascinante: Jesus jamais pecou em atos, em palavras ou mesmo em pensamentos. Embora Jesus tivesse a fraqueza de uma vontade humana sujeita a tentações, ele jamais cedeu a qualquer delas. Ele derrotou o diabo no deserto. Lucas diz que Jesus foi tentado durante todos os 40 dias em que esteve lá – não foram só aquelas três vezes descritas. Cristo era a palavra de Deus encarnada, e da própria Escritura de Deus ele tirava o seu alimento espiritual. Jesus cita a Bíblia o tempo todo. Foi com as Escrituras que ele derrotou a tentação do diabo, e  foi com ela que ele venceu os seus inimigos. Com a máxima absorção da Bíblia, Jesus foi perfeitamente sábio em tudo o que fez e jamais se desviou de qualquer dos mandamentos de Deus. Como diz Hebreus 5, ele em tudo foi tentado e nunca pecou, sendo assim hábil como sumossacerdote para se compadecer de nós. E por que a perfeita santidade de Cristo é necessária? Ora, apenas o sacrifício perfeito poderia agradar a Deus e aplacar a sua ira. Apenas alguém absolutamente justo poderia imputar sua justiça aos pecadores. A imensa santidade de Deus não se satisfaz com nossos melhores esforços, mas apenas com a vida perfeita do Senhor Jesus. Mesmo os antigos sacrifícios já prenunciavam isso – Deus só se agradava dos animais sem defeito. Nenhum pecador pode dar a vida pelo outro, pois ele também está em dívida. Como um endividado ajudará o outro? Não, somente um homem perfeito, que cumpriu tudo aquilo que cabe ao homem cumprir, é apto para ser um sacrifício substituto, retirando a ira de Deus dos pecadores e justificando-os por sua própria obra.

            A morte humilhante de Jesus. Havendo provado sua total aptidão e competência para sofrer em nosso favor, Cristo submeteu-se à mais terrível provação que qualquer homem já passou. Pense que Jesus sempre habitou no paraíso, em perfeita beatitude. Agora, ele está sangrando, sofrendo o escárnio dos ignorantes, sua carne dilacerada, os pregos dos chicotes arrancando pedaços de si, os cravos da cruz segurando seus pulsos e pés, sendo chamado de mentiroso e ridículo. Mais do que tudo, Jesus sofreu toda a ira de Deus devida aos pecados de toda a humanidade concentrada apenas em si mesmo. Ele sofreu a mais terrível dor que o Filho Unigênito poderia sentir – sua separação do Pai. Naquele momento, a Trindade foi dividida. Jesus foi abandonado pelo Pai para sofrer sozinho, pois, tendo tomado sobre si a maldição dos pecados, não pode o santíssimo Pai comungar com ele. Cristo sofreu tudo aquilo que os pecadores devem sofrer. A máxima humilhação e dor física que existia na época para castigar criminosos, o sofrimento espiritual de receber o santo ódio de Deus – tudo o que nós merecíamos por nossa afronta. Jesus não teve uma morte rápida e indolor, ele sofreu por longas horas, como alguém condenado ao inferno. Mas é esse sacrifício que quita a dívida humana contra Deus. É na morte de Cristo que morremos para o domínio do pecado (Romanos 6), pois o seu sangue derramado purifica o nosso espírito, conforme Hebreus 9. Na cruz, embora sendo total vítima, Jesus foi também vitorioso sobre a maldição da Lei que nos condenava, pregando na cruz todo o poder do diabo (Colossenses 2, Hebreus 2) e o poder do pecado e da morte.

            A ressurreição majestosa de Jesus. Mas como a morte poderia deter aquele que sobre ela triunfou? Como o justo poderia ser destruído por Deus? Não, a missão de Cristo como servo estava cumprida, mas sua missão como Rei estava para começar. No terceiro dia após a sua morte, Jesus ressurgiu dos mortos. Jesus Cristo é a própria vida eterna, é essencial que ele seja vivo. Sua ressurreição é a parte complementar da sua morte; uma não pode ser eficaz sem a outra. Sua morte é o fim do poder do pecado e da dívida; sua ressurreição é o início da nova vida em santidade e eternidade. 1Coríntios 15 é o mais longo e detalhado texto que fala da importância da ressurreição. Se Jesus tivesse apenas morrido e não ressuscitado, o que ele poderia fazer por nós? Se até ele tivesse sido tragado pela morte – ele, que é Deus eterno – que chance nós teríamos? Onde estaria o seu poder para também nos ressuscitar no último dia? Colossenses 1 diz que Jesus é o primogênito dentre os mortos, isto é, ele foi o iniciador da gloriosa ressurreição para o Dia do Senhor. Mesmo que dois personagens do Antigo Testamento (livro dos Reis) e mais alguns no Novo já haviam ressuscitado antes de Cristo, eles apenas voltaram à vida corrupta para morrerem de novo. Quando Jesus ressuscitou, ele já estava em seu corpo glorioso, de cuja substância também participaremos quando formos renovados.  Se Cristo não houvesse ressuscitado para a vida eterna e pura, nem nós seríamos. Sua ressurreição, dessa forma, é parte essencial de sua obra de salvação.
           
A ascensão de Jesus. Raramente pensamos na importância de Jesus ter subido ao céu. Entretanto, se o homem Jesus voltou à sua santa habitação celestial, significa que ele recuperou toda a sua plenitude divina que ele tinha antes de ter encarnado. Os sermões de Atos frequentemente mencionam a ascensão de Jesus, embora não com esse termo. A recuperação de Jesus de seus poderes no céu foi a sua recompensa como o servo obediente na cruz. Isso significa que tudo voltou a ser como antes? De forma alguma. De fato, Jesus voltou a reinar sobre o universo, mas o seu novo reino tem consequências derivadas de sua missão como homem. Sentado no trono à direita de Deus, Cristo é o sumossacerdote que eternamente intercede por nós. Sempre que pecamos, Jesus apela a Deus para o seu sacrifício, para que nenhuma condenação caia sobre nós. Por isso dizemos que o sacrifício foi único, mas que o sacerdócio é eterno. Hebreus nos ensina que Jesus serve no tabernáculo celestial, não mais se sacrificando, mas baseando a sua defesa por nós no seu sacrifício. Por essa razão, temos o eterno perdão de Deus. A atuação constante de Cristo por nós no céu é o sustentáculo de nossa salvação e é a parte complementar de sua obra sacrificial (veja outro motivo porque não são nossas obras que sustentam a nossa salvação). Além disso, Jesus, uma vez no céu, envia o Espírito Santo sobre a Igreja. Na última ceia, Jesus falou muito sobre a importância de sua ida para longe dos discípulos, embora não fosse abandoná-los, justamente porque seria a única maneira de ele enviar o Paráclito. O Espírito Santo é o agente de Cristo que provê para a sua Igreja a santificação, o consolo, o discernimento, a sabedoria – isto é, é o próprio Espírito de Jesus em nós. Assim como ele esteve corporalmente conosco, também está agora espiritualmente. Para a existência e a manutenção do seu reino da terra, foi necessário que ele subisse para junto de Deus, a fim de que ele continue reinando, intercedendo e guiando os seus pelo Espírito. Assim a ascensão é parte de sua obra salvífica.
           
O retorno de Jesus. Essa é a parte referente à nossa salvação futura. Assim como fomos salvos pela vida, morte e ressurreição de Jesus, e somos salvos continuamente pela sua atuação no céu, também seremos salvos quando ele retornar visivelmente. O seu retorno é a consumação de toda a história dirigida por Deus para a sua glória. É a renovação de todas as coisas, a volta do paraíso perfeito, o novo e melhor Éden. Será o ponto culminante de toda a comunhão com Deus, a nossa união com o Filho. O fim de todo pecado, a destruição completa do mal e a total santidade e majestade do reino de Deus sobre os homens. Será o cumprimento de tudo aquilo que Jesus fez antes. A eternidade, a glória, a felicidade. O juízo de Deus e a sua redenção finais. Enfim, toda a dor terá findado, e a maravilha da beleza de Deus será plena para todos os seus filhos. Assim seremos salvos. A essa esperança nos agarramos.

            André Duarte

domingo, 14 de abril de 2013

Lei, tradição e verdadeira espiritualidade



            

            Do que consiste a vida cristã? Um conjunto de regras? Sentimentos corretos? Um relativismo em que o que importa é a intenção? Ora, é evidente que ser seguidor de Jesus envolve obediência. Mas obediência a quê, exatamente? A obediência ao evangelho precisa ser bem compreendida com relação aos seus pressupostos, sua finalidade, seus objetos. Todos os crentes sérios concordam que o pecado é algo ruim, presente em pensamentos, palavras e atos, que deve ser evitado. No entanto, quando se pergunta a um crente exatamente quais coisas são pecados, é difícil receber uma resposta completa. Na verdade, em certo sentido, essa será uma pergunta eterna. Todos nós temos dúvidas sobre quais práticas são pecaminosas, quais são os limites do pecado. Mas existem várias doutrinas gerais na Bíblia sobre a maneira de se lidar com o pecado, e elas ajudarão muito no discernimento. Para esse estudo, quero colocar uma delas a partir dos textos nos evangelhos sinóticos – a briga de Jesus com a tradição dos anciãos – com um paralelo em Colossenses 2. Basicamente, o que esses relatos ensinam é que tanto o pecado quanto a obediência encontram-se no espírito do homem e se manifestam em frutos, e não que eles vêm de fora para dentro.

            O texto é bem conhecido. Jesus é confrontado pelos fariseus porque os discípulos não lavavam as mãos antes de comer. Esse lavar de mãos não era higiênico, era apenas cerimonial. De acordo com algumas proposições do Talmud, o homem que não lavava as mãos antes da refeição era como um assassino. Essa ordem é parte da tradição dos anciãos, não dos mandamentos de Deus. E Jesus confronta esses religiosos justamente no amor que eles tinham por suas tradições, a ponto de elevá-las a uma normatividade maior do que a própria Lei de Deus. Jesus cita o profeta Isaías, dizendo “Em vão me adoram; seus mandamentos não passam de regras ensinadas por homens”. Aqui, Jesus combate a hipocrisia de pessoas que querem legislar por conta própria, enquanto ignoram as ordens divinas. Para ilustrar, pense no seguinte exemplo: o crente que diz que ir à boate é pecado (absolutamente), mas, na hora de dar carona aos amigos, não se importa de esconder um deles no porta-malas ou de colocar mais de três pessoas no banco de trás. O que ele está fazendo? Simplesmente se justificando com base em uma regra inventada por homens – pois Deus nunca disse que era pecado ir à boate – e pecando em desobedecer a uma ordem sensata do Estado, o qual é colocado por Deus para reger os atos civis.

            Jesus ensina aqui um limite para o que se pode definir como pecado. Pecado é sempre definido pelas Escrituras, nunca por invenções humanas. Tradição dos anciãos não é só problema dos judeus, mas também da Igreja. Católicos romanos e ortodoxos abertamente nivelam Bíblia com tradição da Igreja, quando não elevam a tradição para acima. Protestantes tradicionais bem sabem da “sola scriptura”, mas frequentemente caem no erro de elevar a opinião dos reformadores e da história de suas igrejas ao mesmo patamar que a Bíblia, como se fossem todos igualmente inerrantes e inspirados. E pentecostais, que apenas começaram uma tradição e uma história, costumam cair no erro de sacralizar líderes e grandes figuras clericais – o famoso argumento do “ungido do Senhor” – de forma a crer neles cegamente. Especialmente se um pastor inicia o seu sermão dizendo que “Deus colocou isso no meu coração”, é difícil ter a coragem de pensar que, talvez, ele esteja dizendo algo errado e vindo apenas de si mesmo. Nenhum ser humano é inspirado divinamente como autoridade sobre fé e prática. Todos devem estar sujeitos às Escrituras. Tradição dos anciãos não pode definir pecado. Mesmo o mais sábio pastor, o mais brilhante teólogo da história, está sujeito à possibilidade de errar.

          Entenda que isso é algo muito sério. Atribuir a si mesmo ou à tradição de nossa preferência autoridade divina e canonicidade é um produto do orgulho humano. Veja como os fariseus se orgulhavam de suas tradições, da sensação de que, por elas, eles se tornavam mais puros. É um orgulho por definição, pois somente Deus tem a competência para legislar sobre pecado e santidade. Se a sua fé está nas definições de outro que não Deus, você está chamando esse outro de deus. Indo mais longe, a legislação humana sobre pecado tem raízes na rebelião e no ódio contra os padrões de Deus. A corrupção humana é avessa às leis de Deus, o que Paulo mostra claramente em Romanos 7. O homem que se apoiar em justiça própria, mesmo que se considere cristão, vai inventar regras para definir o que é pecado, o que é santidade, o que é piedade. Dessa forma, ele contornará as leis de Deus e conseguirá submeter-se a um ente de sua imaginação, crendo nisso como seu salvador e prescindindo de Jesus. É disso que consiste a distorção da falsa religião no cristianismo.

      Além disso, veja a essência das regras humanas: elementos externos. Regras humanas têm a característica de partir do exterior para o interior. No caso dos fariseus, eles pensavam que o alimento que entra no homem sobre o qual mãos não lavadas tocaram tornaria o homem impuro. É inerente ao ser humano também pensar que o problema tem origem no ambiente, e é o ambiente que corrompe o coração. Mas Jesus ensina algo único aqui. Ele diz que inerente ao homem é a impureza. É a sua maldade inata que transborda em atos externos. O homem não é levado a pecar por aquilo que ele come, ou pelo lugar onde ele está, ou pelas pessoas ao seu redor – embora esses elementos tenham sua importância. Em última instância, o homem peca porque isso é de sua natureza. E não há regra alguma que possa mudar isso. Ora, é tão risível que homens religiosos ainda tentem moldar o caráter de seus liderados por meio de regras inventadas. Se nem mesmo a Lei de Deus foi eficaz para transformar o coração humano, que chance leis humanas têm? A lei, seja ela a de Deus ou a da consciência, tem papel condenatório, nunca santificador.

          Veja o mesmo problema em Colossenses 2. Fico pensando, o que será que legalistas pensam quando leem esse texto? Que isso só pode ser com os outros, nunca com eles? Por que será que nunca ouvi uma pregação sobre isso? Penso que é um dos textos mais esquecidos da história. Não me refiro ao capítulo todo, claro, mas aos versículos 20 a 23, em especial: “Já que vocês morreram com Cristo para os princípios elementares deste mundo, por que, como se ainda pertencessem a ele, vocês se submetem a regras: Não toque, não manuseie, não prove? Todas essas coisas estão destinadas a perecer pelo uso, pois se baseiam em mandamentos e ensinos humanos. Essas regras têm, de fato, aparência de sabedoria, com sua pretensa religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo, mas não têm valor algum para refrear os impulsos da carne”. Cada termo sintático é maravilhoso e confrontador. Regras não mudam o espírito. Ninguém consegue combater seus maus desejos por meio da observância de regras exteriores. Não é o tempo, não é o lugar, não são as pessoas, não são os objetos – nada disso é a causa para o seu pecado e nem o poder para detê-lo.

         Mas não é assim que a cristandade parece funcionar. Somos bombardeados com tradição dos anciãos, interpretações fixas e indiscutíveis sobre a Bíblia, adição de ordenanças sem fundamento escriturístico, dizendo-nos que é assim que não pecamos. É a música laica que entra em nossos ouvidos e nos faz pecar, sendo a solução apartar-se disso. É a boate que incita desejos sexuais, logo, o mandamento é não ir à boate. Os namoros precisam de uma rotina e uma observância de regras convencionais porque é isso que atribuirá santidade e que impedirá o pecado. Assim, a religião cristã torna-se idêntica a qualquer outra religião, com seus ascetismos, suas esquivas de contatos com coisas definidas como mundanas demais e sua confiança em invenções humanas. Mas a fé cristã compreende o pecado da maneira como Jesus ensina – que ele está inato ao homem, que ele parte do interior para o exterior, e que ele não pode ser refreado por regras. Qual é, então a solução? Quem não compreende a crítica ao legalismo costuma temer o antinomismo, a ideia de que, posto tudo isso, um crente pode fazer o que quiser e agir como bem entender. O evangelho, porém, é outro caminho.

            Colossenses 3 mostrará o caminho. Se a observância de regras ascéticas é ineficaz contra o impulso pecaminoso, o que é eficaz? Esse texto fala da ressurreição em Cristo para uma nova vida. Ele diz “pensem nas coisas do alto”. O que isso significa? Que a solução não está na criatividade para regras circunstanciais, e sim em tudo aquilo que Cristo realizou por nós. Ele veio como homem, viveu perfeitamente sob todas as regras e morreu em nosso lugar. Ele saldou nossa dívida com Deus e transferiu a nós a sua justiça. E ele ressuscitou para nos dar a esperança de uma renovação interior e de uma glorificação no fim. Manter a mente nessas coisas, nas bênçãos espirituais de Cristo, isso sim é um golpe nos impulsos pecaminosos. O evangelho é o poder de Deus. Sabendo que somos pecadores amados pelo rei, compreendemos que não há nada além dele de que precisamos para nos mantermos justos. Recebemos a paz para servi-lo por gratidão, não mais por medo ou orgulho. Somos verdadeiramente libertos do domínio do pecado quando abraçamos em profunda humildade o perdão do Senhor. Meditar no evangelho, em tudo o que Jesus significa, em tudo o que ele é, suas implicações para a vida, isso resulta em rejeição do pecado, em não mais achá-lo tão atraente quanto antes.

      E o texto prossegue dizendo “portanto, façam morrer em vocês essas coisas”. Paulo fala da regeneração, do nascer de novo. Ele fala da nossa morte da vida passada com Cristo e de nossa nova vida em sua ressurreição, como homens transformados. O resultado dessa união com Cristo, feita mediante a fé, é que o pecado é mortificado no interior. A obra de Jesus é o que atinge o pecado no espírito humano, o que nenhuma regra jamais poderia fazer. Assim como o pecado está no interior e se expande para fora, também é necessário que a purificação mate o pecado na raiz, no coração do homem. Hebreus 9 mostra que o sacrifício de Cristo é totalmente eficaz, único, definitivo e suficiente para não apenas perdoar pecados, mas para realizar verdadeira purificação interior. É o evangelho que conduz à obediência, não é a obediência que força um apego ao evangelho. Por essa razão, Paulo resume a mensagem proclamada em Romanos no termo “obediência que vem pela fé”. A obediência conforme as pretensões das regras humanas não vem pela fé, e sim pela idolatria. Nem deve a fé ser pensada como um credo proclamado sem poder. Mas a obediência que vem pela fé é a característica de um verdadeiro adorador. Alguém que obedece a Deus por amor e gratidão, por saber quem ele é, por descansar em suas promessas e em seus atos. Que observa as regras de Deus, deixando as de homens como secundárias, por saber que Deus é o verdadeiro Senhor e Salvador, e que só ele é digno de toda a confiança e devoção.

            André Duarte

           

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Louvor litúrgico e os pressupostos de sua adequação



            Já existem posts sobre quase todos os elementos da liturgia. Já comentei sobre o sermão, sobre a oração (embora não a litúrgica), os sacramentos, liderança da Igreja, comunhão, evangelismo. Embora sejam todos assuntos que mereçam mais atenção, vou colocar meus pensamentos sobre o louvor litúrgico, isto é, o louvor expresso por meio da música durante um culto público. Defino assim esse tema porque louvor, como é do senso comum, é expresso em todo tipo de ato feito para a exaltação de Deus; entretanto, é da linguagem usual chamar a música de “louvor”. É sobre isso que escrevo aqui.
           
Durante a história da Igreja, esse tem sido um assunto que muito recebeu a atenção dos teólogos. Nunca foi motivo de descaso. O entendimento da Igreja sempre foi de que o louvor com música é parte essencial do culto congregacional, devido ao legado dos salmos no velho templo. Por conseguinte, uma distorção no louvor afetará a adoração como um todo, enquanto um louvor adequado é eficaz para a edificação espiritual da Igreja. Talvez seja importante, didaticamente, dividir a forma do louvor em três momentos: a forma da Igreja Católica Romana, a do protestantismo tradicional e a do neopentecostalismo – esse último, tendo aparecido há poucas décadas. A Igreja Romana trabalhava o louvor por meio de um coral, que cantava em latim. O povo, consequentemente, não conseguia participar, por não compreender a letra. Na Reforma, houve todo aquele cuidado para que o culto fosse feito na língua vernácula. As pessoas foram incentivadas a participar cantando. Em algumas igrejas, era permitido o instrumento do órgão. Até a primeira metade do século XX, o louvor era cantado pelo povo, dirigido ainda por um coral, por meio de hinos. Ainda hoje existem igrejas tradicionais que usam o hinário Cantor Cristão. As Assembleias de Deus usam a Harpa Cristã. Em igrejas negras, o estilo musical dos hinos era um tanto diferente, mais emotivo, passional. A renovação do neopentecostalismo mudou completamente a maneira do louvor em igrejas que imitaram esse “avivamento”. O louvor eclesiástico passou a refletir a revolução do rock, com a mania por bandas, instrumentos elétricos e barulhentos. A ideia é que o louvor fosse feito com mais emoção, sem aquela sensação mecânica que, segundo a opinião dos revolucionários da época, caracterizava os antigos hinos.

             Não quero cair em um extremismo de dizer que o louvor por hinos é o certo e o louvor por músicas modernas com bandas é o errado. Se eu fizesse isso, estaria apenas sacralizando um modelo cultural para condenar outro. Mas é importante fazer críticas a esse louvor moderno, pois os seus danos não são poucos. Não porque o princípio dele seja essencialmente errado, mas porque suas consequências factuais foram, sob muitos aspectos, desastrosas. Em primeiro lugar, é um louvor que se alheia de sua comunhão histórica com outros protestantes, na maioria dos casos. As bandas de louvor costumam prezar por novidades, as músicas mais novas, como se o mais novo fosse potencialmente mais interessante. Ora, os hinos têm inspirado os cristãos por séculos, e apenas modernamente existe essa resistência, essa rejeição. Mas esse paradigma de preferir a novidade ao tradicional é uma ideia mundana. São os mundanos que consideram as coisas velhas como descartáveis e inúteis.

Entretanto, a idade das músicas não pode ser o único critério para a escolha e a performance delas. Vamos supor que os hinos de antigamente fossem hereges e as músicas de hoje representassem uma reforma teológica. Nesse caso, obviamente o mais novo seria melhor. Mas o caso parece ser exatamente o contrário. Se você passar cada uma das músicas cristãs da história pelo crivo da verdade bíblica, da adequação pública e do cumprimento da finalidade de exaltar o nome de Deus, o antigo supera o novo imensamente. Quase todos os hinos antigos são ortodoxos e centrados em Cristo, enquanto as músicas modernas são frustrantemente rasas na teologia, quando não completamente erradas, centradas no homem e, como se não bastasse, de uma musicalidade e poesia pobres. Não digo que são todas assim. Algumas músicas de hoje ainda se salvam, mas são grãos de ouro num monte de areia. Você já deve ter reparado em quantas canções de hoje recebem críticas de alguns poucos que se dispõem a fazer a análise. E os hinos antigos, quantos deles você consegue criticar?

Repare na centralização no homem. Como as músicas de hoje falam “eu”. Tudo “eu”. Eu é que louvo, eu adoro, eu prospero, eu obtenho a vitória, eu faço, eu falo, eu me prostro. Alguns desses “eus” estão totalmente errados, outros estão certos, mas, mesmo para os que estão certos, não devem eles predominar sobre os versos que têm como sujeito Deus. Deus é mostrado simplesmente como um abençoador dos meus interesses nessas músicas. Pegue cada música e pergunte “essa música está louvando Deus ou louvando a mim mesmo?”. Não é suficiente que a música diga coisas boas sobre Deus. Se Deus é louvado por servir ao meu bem-estar, não é realmente um louvor a Deus.

A centralidade no homem ultrapassa a letra das músicas. Ela também se mostra presente quando o louvor vira um show. Você sabe que existem louvores que nada mais são do que bandas fazendo shows com uma letrinha gospel. Isso é especialmente perigoso para qualquer banda. Algumas bandas realmente conseguem deixar transparecer humildade e desviar a atenção de si para Deus, mas isso é bem difícil. O caráter animado e festivo das músicas é outro fator que contribui para o foco no talento dos músicos. (Mais uma vez, não estou falando de um princípio necessário que vai atingir qualquer banda de louvor, mas sim da generalidade dos casos concretos.) Ora, uma série de músicas que falam sobre o eu com uma banda que ostenta seus talentos não está realmente adorando Deus.

E ainda existe mais um aspecto da centralidade no homem: a ideia de que o louvor é o momento da “ministração”, isto é, do seu êxtase espiritual. Na maioria das vezes, a finalidade é levar as pessoas a elevar seus sentidos para fazer um contato superior com Deus, com expressões emotivas, por meio de uma música repetitiva que serve para “criar um clima”. Já reparou que as músicas frequentemente servem de instrumento acalentador das emoções para facilitar o êxtase? E fica a questão: biblicamente, é para isso que serve o louvor? As músicas devem ser feitas para deixar você mais emotivo e mais fragilizado? Repare no fundamento dessa ideia: as emoções são a causa para uma contemplação do divino e para o arrependimento. Esse fundamento está totalmente errado. É a verdade do evangelho que me leva ao arrependimento e à adoração passional, não emoções forçosamente induzidas. Se o evangelho estiver presente e profundo na música, ela será muito mais eficaz para a edificação e prescindirá totalmente desses climas forçados. A consequência desse estilo de música ministrador é, mais uma vez, a centralidade no homem: o louvor existe para aquecer o meu coração, para que Deus resolva meus problemas internos, para me dar uma sensação gostosa.

Outra consequência desse louvor estilo rock é a banalização da grandeza de Deus. Músicas exageradamente festivas pressupõem que a adoração a Deus deve ser corporalmente expressiva da emoção “alegria” – outras emoções não são importantes. Quando um ministro diz que eu sou livre para cantar, sair do meu lugar, pular e gritar, minha pergunta é: tudo bem, mas sou livre também para não fazer essas coisas? Deus é drasticamente reduzido se eu penso nele apenas como uma pessoa legal que me dá alegria. E, mais uma vez, é uma alegria forçada pelo barulho da música, pela interminável repetição de versos e pela própria alegria do ministro. Mas, quando eu me deparo com uma música que chama a atenção para Deus, e não para o clima, que me apresenta o evangelho em música, e não letras rasas, eu sinto emoções genuínas de alegria pela salvação, tristeza pelo meu pecado, espanto pela soberania de Deus, paz pela sua segurança, contrição pela minha condição humilde. A impressão de que hinos são uma adoração mecânica é errada, embora não faltem exemplos de pessoas que assim os usam. Muito mais mecânica é a emoção expressiva induzida (e, às vezes, coagida) por elementos externos da situação – barulho, repetição, apelos do ministro.

A preocupação de quem apoia o louvor por bandas é a relevância cultural delas. Ou seja, descrentes prestam muito mais atenção em bandas do que em hinos antigos. Essa é uma preocupação legítima. Mas, até que ponto um louvor deve se adaptar culturalmente? Os músicos devem ostentar seus dons, como os músicos seculares fazem em seus shows? Ela deve induzir animação corporal, com saltos e gritos? Ela deve prezar mais pelo barulho dos instrumentos do que por uma letra verdadeira e profunda? Aqui, vou apresentar a opinião que aprendi com a tese de mestrado do Zazo. É bom que os louvores se adaptem culturalmente, mas não tanto. Se você adaptar demais, você só vai dar ao povo o que eles querem. Se adaptar de menos, poucos o ouvirão. E que ensino bíblico existe sobre essa moderação na adaptação cultural? Os salmos de louvor. É óbvio que os salmos são perfeitamente ortodoxos, infinitamente profundos, completamente centrados na exaltação de Deus. Mas eles não são estranhos à cultura pagã. Frequentemente os salmos falam sobre como Deus criou e governa sobre os astros – e isso chama a atenção de pagãos que adoram os corpos celestiais. O salmo 104 menciona o Leviatã, uma figura mitológica dos cananeus, e diz que foi Deus quem criou o Leviatã para que ele brinque no mar – ou seja, o ensino da superioridade de Deus sobre quaisquer elementos da natureza. Os salmos mencionam cidades conhecidas, países estrangeiros. Eles aludem o tempo todo para a inutilidade de ídolos. Veja que maravilhosa comunicação cultural! Os salmos não são fechados à realidade do judaísmo, e nem são prejudicados em seu conteúdo e formalidade para chamar a atenção dos descrentes.

Os músicos de Igreja precisam aprender a fazer como os salmistas: combinar com excelência o seu ensino teológico verdadeiro e profundo, bem como a finalidade de colocar a atenção em Deus, com a relevância cultural para chamar a atenção de descrentes. Os elementos do mundanismo devem aparecer nas músicas para serem rechaçados pelo evangelho, não para suprimirem o evangelho e serem reforçados.

André Duarte

terça-feira, 9 de abril de 2013

Batalha espiritual – acontece mesmo?


           
         O cristianismo renovado das últimas décadas é marcado por uma ênfase na chamada batalha espiritual. Há livros e mais livros ensinando como fazê-la, pregações a respeito disso e inteiras teologias com esse centro. Entendo bem essa crença, porque eu fiz parte dela durante o começo da minha adolescência. Era viciado na literatura de Daniel Mastral e Rebecca Brown. E, de fato, o fundamento da teologia da batalha espiritual, da maneira épica que é ensinada hoje, é esses livros de testemunhos pessoais.
           
Uma mania que o próprio Daniel Mastral registra em seu testemunho é justamente que os crentes adoram livros de ex-satanistas. Ele mesmo percebeu que esses relatos sobre demônios e magia negra incitam a curiosidade dos cristãos que acabam se fascinando por um sobrenatural cheio de guerra medieval e mágica. São cristãos usando métodos espirituais, ajudados por anjos com espadas, em guerra contra satanistas e suas magias com demônios horrendos, e a vitória dependerá da quantidade das orações, clamores e santificação. A soberania de Deus sobre essa batalha fica deixada de lado. Deus não decide muita coisa, ele espera que nós façamos tudo. É isso que a ficção do Este Mundo Tenebroso mostra: pessoas, anjos, quantidade e frequência de orações, e nada de Deus.
           
O problema é que testemunhos de ex-satanistas não são canônicos. Não interessa o que eles dizem que experimentaram. Imagine se os ensinos que um ex-satanista aprendeu podem servir de complemento à Bíblia! E esses livros não demonstram uma mudança de pensamento quando da conversão desses autores. Quando você lê, por exemplo, Filho do Fogo, um monte de heresias estão lá, mas você pode pensar “Ah, mas ele era satanista e aprendeu tudo errado mesmo, normal”. Mas, quando você continua a saga em Guerreiros da Luz, as mesmas bobagens mágicas são ensinadas, com a única diferença de que é Deus quem ganha no final. Rebecca Brown também conta de sua conversão no Ele Veio Para Libertar os Cativos, mas seus livros de crente repetem a percepção errada sobre Deus que ela aprendeu com satanistas. Complementos à Bíblia a partir do que os supostos ex-satanistas viveram não podem ser aceitos. Se nem a sua experiência pessoal pode servir de cânon equiparável à Bíblia, muito menos a experiência de algum outro.

            Batalha espiritual não pode ser o centro da vida cristã. Não é nem mesmo um tema relevante para que a Bíblia explique. Precisamos, então, dar uma olhada em certos textos que são frequentemente adaptados ao pressuposto da batalha espiritual, mas que não têm nada a ver. Para começar, o famoso Efésios 6. Ah, o texto mais lido de Efésios, a armadura do cristão. O que esse texto ensina? Lembre-se de que a Bíblia é centrada e fundamentada na salvação em Cristo. O texto não ensina sobre o revestimento da armadura para a proteção contra ataques do diabo às circunstâncias da vida. Isto é, em primeiro lugar, pare de pensar em diabo quando você está com algum problema. Se é que você é um salvo, se é que você está em Cristo, os seus problemas não são causados por demônios. No máximo, demônios podem ser usados por Deus para cumprir o propósito dele na sua vida. Mas quem manda na sua vida é Deus, não o diabo. Se você ficou doente, se você perdeu o emprego, se você foi assaltado, se você tem problemas no casamento, a causa dessas coisas é Deus, não demônios. As circunstâncias desagradáveis são determinadas por Deus, seja para construir uma maturidade espiritual melhor em você, seja para fins disciplinares por conta de algum pecado ou erro.

            Se o diabo não ataca as circunstâncias da sua vida, então ele ataca o quê? Ele ataca a sua relação com Deus. Seus intentos são para levar você a pecar e ofender o Senhor e, assim, ele pode acusar você diante de Deus. É para isso que você precisa da armadura. O problema é o seu pecado, não suas dificuldades na vida. Não desvie o foco daquilo que Deus considera importante. Bem, nesse caso, como fazer esse revestimento da armadura? Ocorre que a armadura é uma metáfora, não um elemento mágico. Existem muitas pessoas que realmente imaginam uma armadura invisível e um ataque de espadas e arcos. Mas a metáfora da armadura nada mais comunica a não ser valores cristãos fundamentais. Veja a consistência dela: justiça, verdade, testemunho, salvação, fé e palavra de Deus. É comum ver pessoas orando para serem revestidas dessas coisas. A pergunta consequente é: por que você estava sem elas antes? Todos os salvos usam essa armadura. Se você não tem a justiça dada por Cristo, se nega a verdade encarnada, se não testemunha do evangelho, se não tem a salvação, se falta a fé em Jesus, se não tem Bíblia... bem, fica bem óbvio que essa pessoa nem crente é. A armadura é uma metáfora da consistência da vida cristã, simplesmente. E essa armadura protege você de ser tragado pelo maligno para se afastar de Deus. Um ensino básico dado em todo o Novo Testamento, apenas dito com essa linguagem bela em Efésios 6. Agora, você pode aplicar esse mesmo fundamento em textos como “O diabo anda ao redor de nós, rugindo como um leão”. A reação a isso não é medo, paranoia e declaração de guerra. É simplesmente manter-se fiel à aliança, confiante na salvação em Jesus.

            Outro texto comumente compreendido erroneamente é o de Daniel 10, em que há uma luta entre o anjo que fala a Daniel, o anjo Miguel e o tal príncipe da Pérsia. (Ensinaram-me, quando criança, que eu não podia jogar Príncipe da Pérsia, porque é o demônio da Bíblia...) Aparentemente, existem anjos em conflito aqui. Embora haja interpretações judaicas diferentes – por exemplo, que Miguel e o príncipe da Pérsia não são anjos, e sim nomes das autoridades nas nações -, a interpretação do conflito de anjos é mais coerente e natural. Bem, para se entender essa luta, é necessário saber o que o resto da Bíblia ensina sobre a relação de anjos com Deus. A Bíblia frequentemente descreve os seres celestiais deliberando no céu tendo Deus como autoridade. Em 1Reis 22, por exemplo, Deus reúne os anjos e pede sugestões de como enganar o rei Acabe para que ele morra na guerra, e cada anjo se manifesta com uma ideia. Zacarias dá o exemplo de Satanás acusando o sumossacerdote Josué, e um anjo repreendendo-o em nome de Deus. O céu é revelado como um tribunal. Na noção moderna de batalha espiritual, a figura do tribunal é substituída pela figura do exército. As falas viraram armas.

E é assim que costumamos imaginar esse texto de Daniel 10: um anjo indo até Daniel e sendo detido no caminho por um demônio autônomo, iniciando algum duelo de espadas, até que Miguel chega e toma parte na briga. Essa imagem está em desarmonia com as descrições de tribunal. Em nenhum momento o texto diz que essa luta foi de natureza bélica. É bem mais coerente pensarmos em uma apresentação de causas diante de Deus por parte dos anjos. Mesmo porque não se pode conceber um conflito entre anjos no qual a decisão soberana de Deus está ausente. Anjos não são autônomos, e isso incluí obviamente demônios. Lembremo-nos do que diz a oração do Pai nosso: “Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”. Essa petição pressupõe que, no céu, a vontade de Deus é cumprida perfeitamente (conforme a Confissão de Westminster, por exemplo). Ou seja, não há bipolaridade nos poderes celestiais. Não existem anjos brigando contra demônios. O que existem são deliberações nas quais Deus decide o que é feito. E se você pensar “ah, mas demônios não estão inclusos no céu”, lembre-se de que, tanto no prólogo de Jó como no texto de 1Reis 22, os demônios estão no céu com os outros anjos diante de Deus. Se você ainda imagina Satanás e os demônios reinando no inferno, afastados daquela brancura do céu, sugiro que clique no tag “anjos” e leia os posts sobre Satanás.

Para terminar, uma perguntinha: você já reparou que houve pessoas na Bíblia que ficaram empolgadas com batalha espiritual, e que elas foram repreendidas por Jesus? Refiro-me ao retorno dos discípulos de Jesus da segunda vez em que foram enviados para pregar por aí (Lucas 10:17-20). É daí que vem o versículo famoso do “eis que vos dou poder para pisardes cobras e escorpiões e todo o poder do inimigo”. Recortar esse versículo dá exatamente o sentido contrário da pretensão do ensino de Jesus. Pois ele responde isso quando os discípulos voltam empolgados, dizendo “Senhor, até os demônios se submeteram à nossa ordem!”, e Jesus, após dizer aquele versículo, complementa com o “porém, não vos alegrais porque os demônios se submetem a vós, e sim porque os vossos nomes estão no livro da vida”. Essa parte, parece que ninguém lembra. Veja o que Jesus diz: alegrem-se em sua salvação! O poder contra demônios é o de menos. O centro da nossa vida deve ser a nossa salvação pela graça de Deus. Pense no evangelho, deixe como nota de rodapé esse fanatismo por exorcismo.

Sendo assim, como devemos entender as dificuldades da vida? Em primeiro lugar, não existe problema nenhum em sofrer e passar problemas. Geralmente, quem fica pensando em batalha espiritual faz um drama desnecessário e até idólatra com os probleminhas do cotidiano. A pessoa é uma satanista e está me perseguindo – apenas porque um colega teve alguma antipatia. É o pneu do carro que furou porque os demônios estão me pegando. Alguém ficou doente – é obra do maligno, é a macumba do vizinho. Esse tipo de pensamento, embora pretenda enxergar o sobrenatural, na verdade, tem o foco fixo neste mundo passageiro e sombrio. Se você se alegra na esperança do reino de Deus, não dará esse valor exagerado às pequenas dores da vida.

Essa cosmovisão errada afeta a maneira como oramos também. Nossas orações são voltadas para a repreensão ao poder do mal. Eu reparei que, quando as pessoas fazem uma roda de oração, a maioria das cláusulas recebe um “amém”, mas, quando a pessoa clama por alguma variante do “toda seta do maligno caia por terra”, o resultado é o maior amém de todos. Se você não percebeu isso, é só prestar atenção, chega a ser cômico. O foco e as emoções realmente estão em Satanás. Ele parece bem mais palpável e próximo do que Deus, e isso é um erro grave. Não há nenhuma oração na Bíblia que se dirija a Satanás; não somos autorizados a nos dirigir a ele em oração. Também não há necessidade nenhuma de mencionar sua possível atuação nas circunstâncias pelas quais oramos, pois Deus sabe exatamente se ele está lá ou não, e sabe precisamente como fazer. Deus não precisa que cubramos todas as hipóteses para as causas sobrenaturais em nossas orações, porque ele já sabe – e não apenas sabe, mas também não revelou a nós. Ore a Deus, ele sabe o que fazer.

André Duarte

domingo, 7 de abril de 2013

Gênesis e a introdução à Bíblia 4 – A queda e a promessa



Para terminar essa série, vamos analisar o relato da queda, o que isso significou para a criação e para a posteridade, e como essa queda seria solucionada. Eu saltei o importante trecho em que Deus ordena a Adão para que ele trabalhe no jardim. Esse é um tema importante, mas, sinceramente, eu não me julgo competente para comentar sobre ele. Na minha carnalidade, ainda tenho uma visão negativa sobre o trabalho. Por isso, vou direto à queda, isto é, ao momento catastrófico em que a aliança de Deus com a humanidade foi rompida, mas não a sua graça.

Dentre todas as árvores do jardim, duas se destacavam: a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. A árvore da vida, conforme é demonstrado posteriormente, dava ao homem vida enquanto do seu fruto ele comesse. Já a outra árvore dava fruto que, se provado, causaria a morte. Ainda em preparação para o relato da queda, o texto diz que o homem e a mulher não sentiam vergonha de sua nudez. Não havia por que esconder nada, não havia motivo para bloquear a transparência. Sem pecado, a humanidade não sentiria necessidade de criar nada que representasse uma persona, pois nada haveria de vergonhoso para ser ocultado.

Surge então a misteriosa serpente. Como compreendê-la?­ É óbvio que Satanás está atuando por ela, pois ele é sempre o tentador da humanidade no resto da Bíblia. Seria a serpente o animal comum que conhecemos? Neste ponto, eu tomarei um rumo mais heterodoxo. Não penso que era uma serpente literal e física, não entendo por que todas as serpentes do mundo seriam castigadas devido ao erro de uma serpente ancestral. Não se pode aplicar uma analogia do castigo à descendência da humanidade, pois, na realidade, todo homem depois de Adão é praticante do pecado e merecedor do castigo; o mesmo não ocorre às serpentes. Devido à poesia do texto hebraico, acredito que a serpente seja um ente imaginário, uma extensão personalizada das pulsões humanas. Afinal, o humano foi criado sem pecado, mas já com tendência à transgressão, com um impulso para a rebelião. Do contrário, não teriam se deixado seduzir. O termo para “serpente” no hebraico é escrito de forma muito semelhante à palavra “desejo”, como se houvesse um jogo de palavras. O diálogo de Eva é feito com ela mesma, e é uma descrição fascinante de como o humano resolve e satisfaz internamente o seu senso de justiça e o seu mau desejo simultaneamente – como o conflito entre um id e um superego é solucionado. Não é dessa forma que nós também nos convencemos a desobedecer a Deus? Não é assim que também caímos nas doces e venenosas sugestões do diabo para seguir os seus planos?*

Talvez a noção pressuposta de que o homem e a mulher eram ingênuos antes da queda atrapalhe o entendimento acima descrito. Costumamos pensar neles como seres de mente infantil e boba, porque eles não tinham o conhecimento do bem e do mal. Mas o termo “conhecimento” precisa ser devidamente compreendido. Não é que os humanos eram mentalmente amorais. Afinal, se eles sabiam que não deveriam comer da árvore para não morrerem, no mínimo, eles sabiam que desobedecer a Deus nesse sentido era um mal. Eles tinham o conhecimento teórico de bem e mal; o que não tinham era a experiência. Eles não haviam ainda experimentado o mal e suas consequências. No entanto, a mente humana, desde o princípio, preferiu voluntariamente o caminho de Satanás ao caminho de Deus.

E como Eva enganou-se? Em primeiro lugar, a serpente sugestiona um exagero absurdo na ordem de Deus: ele proibiu todos os frutos do jardim. Essa frase representa o ódio generalizado contra a lei divina e seu caráter percebido como grandemente cerceador, intromissivo e desproporcional. Eva, em sua razoabilidade, responde ao seu “id” que, na verdade, Deus só proibiu o fruto da árvore do conhecimento, mas acrescentando uma sutileza: que Deus proibiu tocar no fruto. Deus nunca disse que era proibido tocar, mas apenas que era proibido comer. Eva, mesmo contrariando a sugestão da serpente, já se mostra por ela enganada em um aspecto quase imperceptível sobre a ordem moral. Isto é, ao mesmo tempo em que Eva rejeita a sugestão da serpente, acaba revelando-se já influenciada, distorcendo apenas no detalhe o comando divino. O senso moral combate o impulso, mas não sai incólume desse conflito.

A contrapartida da serpente é contestar o espírito da ordem moral ressignificando-a. Isto é, a serpente não disse uma mentira completa, como da primeira vez. Ela adaptou a ordem de Deus aos interesses da Eva. E, ainda, instigou-a a duvidar do caráter de Deus, insinuando que Deus estava com temor de que Eva se tornasse como ele. Veja que, na literalidade, tudo o que a serpente disse é verdade. Eva realmente não morreu fisicamente quando provou do fruto e realmente se tornou conhecedora como Deus, como Deus mesmo diz no versículo 22. Mas a maldade por trás da desobediência mostrou-se presente. O senso moral de Eva ficou satisfeito com o argumento do mau impulso. O desejo de sentir-se divino dominou a vontade do ser humano, e a sua incredulidade quanto aos preceitos de Deus teve o seu início. É notável que o domínio do pecado sobre o homem consiste na sua ausência de fé em Deus, na sua rejeição do que ele diz e no prazer em se tornar um deus. Essa é a idolatria a si mesmo que todo homem tem. Fraquejado pelo impulso maligno, o senso de justiça cede, sofre uma reprogramação e relativiza a moral divina para benefício próprio.

É importante notar também que a tentação ao pecado é extremamente prazerosa. Quando imaginamos o diabo, pensamos em alguém horrendo, mas não é assim que ele se apresenta. Em nossa segurança, imaginamos a prática do pecado com grande desgosto e amargura, mas, quando o momento realmente vem, o prazer carnal é vívido. Eva percebeu que o fruto era belo, que parecia delicioso. E ainda foi seduzida pelo fim dele, que é dar conhecimento sobre bem e mal. A tentação carnal é real e não deve ser subestimada. Eva comeu do fruto, ignorando a orientação de Deus e tudo de bom sobre a sua sabedoria que ele já havia confirmado, e levou ao marido pra ele também comer. Instigado pela mulher, o que o homem não faz? Facilmente Adão foi seduzido e transgrediu. Nesse momento, tanto Adão como Eva representam toda a humanidade posterior. A figura de Adão é mais enfatizada no Novo Testamento. Romanos 5 diz que Adão foi o início do reino da morte, pois em Adão todos pecaram e morreram. Mas Cristo, o perfeito o homem, a plena imagem de Deus e o supremo marido cumpriu todo o propósito no qual Adão falhara. Jesus, pelo seu ato sacrificial, imputou a todos justiça e vida, tal qual Adão havia imputado morte pelo seu ato pecaminoso.

O que se segue é uma total catástrofe. Para começar, o casal percebe sua nudez e se envergonha. O senso de imoralidade domina a alma e cria a necessidade da persona. O homem nunca mais revelaria quem ele é, pois o pecado traz o medo da transparência e a segurança na mentira. Em seguida, o casal se esconde de Deus. Tamanha ingratidão a do homem primitivo e a nossa! Desde esse dia, também buscamos inutilmente nos esquivar de Deus, fechando os ouvidos para a sua palavra e criando nossa ilusionaria zona de estabilidade centrada em nós mesmos. Deus, porém, questiona o homem sobre o que ele fez. O marido, corrompido e ímpio, agora manchado pelo pecado, coloca a culpa na mulher e também em Deus – “a mulher que tu me deste”. Aquele que foi designado para proteger e zelar pela mulher tentou jogar para ela a responsabilidade. Preferiu que ela sofresse, quando deveria dizer “Senhor, castigue-me em lugar dela” – que foi justamente a atitude de Jesus em sofrer a ira no lugar de sua noiva. E Adão ainda se ira com Deus, como se o culpado fosse Deus de colocar a mulher para induzi-lo ao erro. Como diz o Provérbios 19:3, “É a insensatez do homem que arruína sua vida, mas o seu coração se ira contra o Senhor”. Que maldade, que terror, especialmente porque nós repetimos a mesma história. Eva simplesmente repete o mesmo raciocínio e culpa a serpente, como se fosse algo externo a ela que fosse responsável pelo pecado, e não ela mesma. Ainda hoje, as mulheres sofrem esse conflito entre a sua vontade moral e a vontade de seus instintos. Os homens também, claro, mas é mais explícito no caso das mulheres.

Deus dá o castigo a cada parte como cabe. Por causa do homem, Deus amaldiçoou toda a criação. O pecado teve consequências globais. Por isso, Romanos 8 diz que a criação aguarda ansiosamente pelo dia da redenção. Também, diz Colossenses, Deus reconcilia em Cristo todas as coisas, inclusive as que estão no céu. Pois todo o universo foi afetado pela queda do homem. E o homem sofre porque a criação não mais coopera com o seu domínio. O castigo da mulher é também facilmente visível: a sua sujeição ao marido tornou-se uma escravidão, uma opressão, como a história tem atestado sempre. A mulher deixou de ser vista como amiga para tornar-se posse. Em Cristo, porém, “não há judeu ou grego, homem ou mulher, escravo ou livre”. Jesus, sendo o perfeito marido, resgatou a mulher para a sua condição de amiga auxiliadora. Nele, as mulheres se libertam da maldição da queda.

A maldição comum ao homem e à mulher é a separação da árvore da vida. Deus, vendo que o homem tornou-se conhecedor do bem e do mal como ele, não mais permitiu que ele vivesse para sempre. A punição de Deus foi, realmente, a morte, conforme ele havia alertado. O homem pecador e experimentador do mal não mais viverá para sempre. Agora, você já reparou o que nós vemos no Apocalipse? Olhe o 22:2, a árvore da vida sendo devolvida aos salvos. Pela salvação do Cordeiro, que sofreu a maldição do Gênesis por nós, que voluntariamente afastou-se da árvore da vida para oferecer-se em sacrifício, temos novamente acesso à vida eterna.

Mas a maldição mais significativa está no castigo da serpente. Deus condenou a serpente a rastejar, de forma que morda o calcanhar do descendente da mulher e seja por ele esmagada na cabeça. Essa figura é real para a literalidade de um humano lutando com uma cobra, mas lembre-se do que essas coisas significam aqui. A serpente, simbolizando o pecado e, por detrás, a atuação do diabo, morderia o descendente da mulher. Isso ocorreu quando o Senhor Jesus, descendente de Eva segundo a carne, foi assassinado por uma multidão de filhos do diabo. Entretanto, nesse mesmo momento, Jesus esmagou Satanás e o pecado. Hebreus 2:14 diz que Jesus derrotou o diabo, que tinha o poder da morte, e Colossenses 2:15 diz que Jesus trinfou sobre os poderes e autoridades na cruz, isto é, o legalismo que dava pulsão ao pecado. Desde Gênesis 3:15, sabemos que viria aquele para triunfar sobre a serpente após ser por ela ferido, para que o paraíso seja restaurado, para que o acesso à árvore da vida seja novamente dado a nós pela graça de Deus.

Para encerrar, uma última consideração. Existe sempre a pergunta do porquê Deus colocou a maldita árvore se ele sabia que o homem pecaria. A resposta mais comum é que Deus queria que o homem lhe servisse por sinceridade e vontade própria, tendo a possibilidade de escolher não fazê-lo, pois Deus não queria adoradores mecânicos. Minha opinião vai para outro rumo. Em primeiro lugar, porque a Escritura deixa claro que o homem é tendente ao mal desde sempre, e não havia possibilidade alguma da queda não ter acontecido. Segundo, porque, filosoficamente, não é necessário fazer separação entre a sinceridade e a obrigatoriedade. Se o homem fosse obrigado a adorar a Deus, seria uma adoração perfeitamente autêntica, e não há por que duvidar disso. Afinal, a adoração que prestaremos na eternidade será totalmente obrigatória, não haverá mais como cair de novo, e nem por isso ela deixará de ser genuína. Meu pensamento é que Deus colocou ao homem a fatalidade da queda para construir a relação de graça posteriormente. Através da queda, Deus revelou a si mesmo e atraiu glória para si mesmo. Em certo sentido, nós conhecemos Deus melhor do que Adão jamais conheceu. O Adão antes da queda não tinha pecado. Como ele poderia conhecer a misericórdia e a graça de Deus? Como ele poderia conhecer a sua soberania sobre o mal? Não estamos acostumados a pensar assim. Mas a realidade é que Deus, através do seu resgate por nós, do seu triunfo sobre o nosso pecado, revela-se a nós e recebe glória de forma que não seria possível se o mundo fosse sempre um paraíso. Deus é soberano sobre a história e se faz conhecido por todo o mundo em todo o tempo. A ele é devida toda a gratidão e a adoração.

André Duarte

*Após a publicação deste post, fui convencido por um caro irmão de que minha opinião que eu reconheci como heterodoxa estava errada. Preferi seguir uma interpretação mais judaica da "metáfora" da serpente e não percebi que ela não era coerente com princípios cristãos relativos à queda da natureza humana e de sua regeneração pelo evangelho. Hoje, vejo que a serpente era, realmente, um ente externo movido por Satanás, e não uma projeção da natureza humana corrompida de Eva; se ela já houvesse sido criada com natureza caída, a regeneração espiritual pelo evangelho ao estado livre da humanidade criada não faria sentido.